"Famílias Cruzadas"
Item
Tema
Trabalho Doméstico
Título
"Famílias Cruzadas"
Entrevistado
Luíza C. e Maria C.
Resumo
Luíza C. é filha de um amor entre uma criada ao serviço da família C. (sua mãe) e o filho do Patrão (seu pai, cujo percurso está ligado a uma importante carreira diplomática). Maria C. é sua sobrinha. A família que acolhe esta união entre duas pessoas de origens sociais tão díspares ("criada de servir" e filho do patrão), obrigando-os a casar, era detentora de uma grande casa e albergava um grande número de empregados domésticos. A história de família aqui retratada permite identificar uma divisão do trabalho fortemente marcada pelo género: uma presença de portas adentro marcada pelo servilismo doméstico feminino, enquanto os trabalhos exteriores eram atribuídos a criados. Nesta narrativa, que abarca muitas décadas de histórias familiares, ao longo de todo o século XX, encontramos casos de mestria e competência entre as empregadas domésticas, tal como de profunda abnegação e admiração. Através de um testemunho contado a duas vozes, acompanhamos vários ciclos de serviço, cuidado, amor e desamor, num retrato que nos permite ver por dentro hierarquias e genealogias de trabalho doméstico .
Data de recolha do testemunho
18 de novembro de 2021
Local de realização da entrevista
Jardim Fernando Pessa (cidade de Lisboa)
Recurso
Transcrição de entrevista por gravação em áudio
Autor da recolha
Inês Brasão
História de vida
Luíza C.: Vou começar por dizer que a minha família é completamente diferente do lado da minha mãe e do lado do meu pai… do lado do meu pai (eu até trouxe fotografias para ver) toda a gente que já tinha curso superior e uma infância… (confortável?) Sim, apesar de o meu pai ter vindo para o Colégio dos Jesuítas. Mas já o meu bisavô tinha bacharelato. Do lado da minha mãe, é completamente diferente. O meu avô era carpinteiro, a minha avó doméstica. Não viviam mal, só que o meu avô morreu e, como tinham vários filhos, veio tudo por ali abaixo (quantos filhos?) Na altura, quatro. Eram três raparigas e um rapaz. A solução era a minha mãe e mais uma das irmãs irem para a Casa Pia. Mas, como elas tinham uma casa, e um terreno pequenino, disseram logo que elas tinham muito dinheiro, quando foram lá para fazer o ponto de situação. Assim, só a irmã da minha mãe é que foi para a Casa Pia. A minha mãe ficou. Só que a minha mãe era uma pessoa muito desembaraçada. Ela tinha 10 anos quando o pai morreu. E, numa família, andavam à procura de uma criança para fazer companhia à Senhora. E a minha mãe foi para lá porque foi a que conseguiu o lugar. (e tinha quantos anos, nessa altura?) Devia ter uns onze…ela não gostava muito de falar da infância. E então, a minha mãe foi, esteve lá um ano, mas a senhora tinha lá um Senhor dos Passos muito grande que ela diz que se assustava quando se levantava de noite e ia à casa de banho, e aquilo assustava-a, e depois a irmã mais velha começava a dizer que, no sítio onde viviam, a festa disto e a festa daqueloutro, e ela acabou por sair e então teve que ir trabalhar. Sei que ela trabalhou numa fabriqueta, uma fábrica de doces para Belém e, como era assim muito espevitada, puseram-na até a fazer marmelada. E depois ela acabou por se queimar e…tiraram-na depois de lá. Devem ter tido também um certo receio, como ela era muito nova…e então foi trabalhar para várias casas. Eu sei que ela trabalhou numas espanholas, mas não gostava de contar (com ênfase). Eu só sei isso. A única coisa que ela me contava é que depois foi parar a uma casa de gente muito rica, tinha um cozinheiro, e ela aprendeu a cozinhar com o Senhor, e foi aí que ela conheceu o meu pai. O meu pai foi uma pessoa que... não sei, depois, mais pormenores… sei que ela acabou por ir viver com o meu pai: tenho impressão que…a servir, e depois acabaram por juntar os trapinhos, como se costuma dizer. Porque o meu pai só casou com a minha mãe pela igreja porque a minha mãe era de um estrato social muito diferente e as minhas tias eram muito, muito religiosas e não iam admitir a minha mãe sem ser casada pela igreja. Para elas isso é que era o importante, até porque o meu pai depois seguiu a carreira diplomática (com que cargo?) Ele chegou a..C.. E pronto. Depois nós nascemos. O meu irmão mais velho nasceu aqui (Lisboa). Nós já nascemos no Norte. Eu e mais dois que eram mais velhos do que eu. E depois como o meu pai andou sempre fora, no estrangeiro, nós acabámos por ficar cá (Lisboa). Entretanto, o meu irmão mais velho, como ia para a universidade, quis vir para Lisboa e nós viemos por arrasto porque a minha mãe era cá de Lisboa. Vim eu e veio outro dos meus irmãos. O outro vivia com as tias.
Em relação ao Norte, eu nasci numa casa enorme, uma casa que tinha quase 40 metros de comprimento e havia muitas empregadas, desde a cozinheira, criadas de sala, depois uma outra que se ocupava da roupa. (quer explicar melhor o que é uma criada de sala?) A criada de sala só serve à mesa - esta por acaso também ia às compras - e tem a incumbência de servir e ver se realmente a comida vinha em condições e, normalmente, auxiliava também a minha tia na roupa, no vestir. Como a casa era muito grande, havia mais duas que se ocupavam da parte de limpeza da casa e havia uma que era quase exclusivamente para passar a ferro, lavar a roupa, pôr no tanque, fazer as barrelas e assim. E havia também os criados do quintal. As empregadas viviam em casa e tinham os seus quartos lá em cima, nas águas-furtadas, mas os quartos não eram maus. E, no quintal, havia o criado que até era mais feitor. Havia um que só cuidava do quintal: de regar, de sachar. Mas esse que vivia no quintal era casado com a filha da cozinheira. Quando nasci, a cozinheira já era muito velhota. A cozinheira foi para lá quando o meu pai nasceu. Foi no fim do século XIX. E ela tinha uma filha (até tinha outra que vivia no Brasil). Ela era uma excelente cozinheira. Eu não tenho memória dos cozinhados dela. Ela já estava muito velha e quase sempre sentada numa cadeira, na cozinha, só para vigiar e assim. Descascava batatas, era o entretém dela, e estava ali sentadinha. E contava-me histórias. Eu às vezes gostava de estar sentada ao lado dela. Contava-me coisas do tempo em que era preciso ir buscar água e que era sonâmbula e que depois ficava muito aflita porque de manhã encontrava os cântaros todos com água. Eles estiveram numa casa em que eu penso que tinham que ir buscar água, mas como era pequena, havia pormenores aos quais eu não ligava. Então ela via os cântaros cheios de água e perguntava-se como aquilo tinha sido possível. Então, a ideia dela foi durante a noite amarrar um avental às pernas e, quando ia para se levantar, acordava… (para travar o sonambulismo). Ela morreu. Julgo que morreu em 1956, 57…ela até morreu de desgosto porque gostava muito do genro e ele tinha morrido. Ninguém lhe queria dizer nada porque ela já estava com muita idade e ela deve ter perguntado por ele (ele vivia no quintal com a filha) e algum de nós deve ter ido “O J. Morreu”. O certo é que ela morreu logo a seguir com o desgosto. Já devia ter oitenta e tal anos. (Portanto, ficou sempre na casa?) Ficou sempre na casa. Aliás, uma das filhas foi para o Brasil e a outra filha ficou lá (na casa). Eu penso que essa filha também trabalhou, em princípio, lá em casa. Quando a conheci já estava casada e tinha os filhos. O mais novo até tinha a minha idade. Os outros eram todos mais velhos. Ela vivia à parte com os filhos, mas lá em casa sempre os acolheram muito bem porque a filha mais velha tirou Farmácia. Uma das minhas tias era madrinha e gostava muito dela. O outro rapaz era afilhado de outro dos meus tios e fez até ao 5º ano antigo. Outra filha fez o 2º ano e não quis mais. Outra foi para a costura porque não queria e depois ainda tinha mais outro que só fez a antiga 4ª classe e também não quis.
Maria C.: A nossa família tinha muitas quintas. Dezanove. Foi o meu bisavô que as comprou. Foi para o Brasil, miúdo, e depois enriqueceu lá, e veio, e comprou 19 quintas e trouxe a família toda. E ele tinha uma quinta muito bonita que é a Quinta da M. (essa quinta fazia parte da família) e eu ainda me lembro de a ir ver. E aqui há uns anos atrás, veio cá uma prima nossa do Brasil, que não conhecíamos, e estivemos a ver a quinta. E o senhor, o caseiro, deixou-nos entrar e é que nos contou como era a vida deles. Por exemplo, eles eram caseiros, mas não podiam ter gado, só podiam gerir o gado dos senhores. Apesar de tudo, os caseiros tinham uma casa, não é?
Luísa C.: Conheci algumas casas que até eram muito boas, de pedra. As outras não sei…
P: E as relações entre o pessoal doméstico, como eram?
Luíza C.: Havia uma hierarquia, não é? Mas, por exemplo, a “Luísa cozinheira”, como a gente lhe chamava, tinha a filha que era casada com o feitor. Depois havia uma outra senhora cuja filha esteve lá como criada, casou lá, e continuou lá, mas já como externa. E havia a sobrinha desse senhor que tinha também uma sobrinha lá a trabalhar. Depois também havia uma senhora que estava lá como Dama de Companhia, mas também fazia assim umas coisas. Essa esteve num convento e acho que se deu muito mal, ou não estavam para aturá-la e mandaram-na para lá. (Imagino que à hora da refeição teriam uma mesa onde se sentavam todos?) Era. Havia uma grande mesa.
Maria C.: Eu já comi com eles nessa mesa!
Luíza C.: A mesa ficava assim encostada à parede, era grande, mas às vezes nem cabiam lá todos e depois comiam outros noutra mesa. Porque havia lá o do quintal, o filho, era o outro senhor que também lá trabalhava, havia a filha, havia uma que era prima, e havia outra sobrinha. A Maria Emília era sobrinha do senhor António. E a Domicilia era sobrinha da Maria Emília. (Em termos de funções?) Temos uma que se ocupava principalmente da roupa, de passar a ferro, lavar e também ajudava a fazer os quartos. A outra fazia a limpeza e também ajudava a fazer os quartos. Havia a de sala porque se fosse para fazer um recado ou ir a casa de alguns primos, era ela que normalmente ia. As criadas de sala normalmente é que iam. (Luíza mostra um avental): Isto já deve ser mais velho do que eu. Essa levava um avental branco. Faziam questão. A da cozinha, tinha o avental da cozinha, mas se tinha que ir buscar qualquer coisa à rua, levava um destes (mostra-me um segundo avental). Na parte de trás, as tiras cruzavam-se. A da cozinha, se tivesse que sair, tirava o avental para se calçar. Elas até gostavam muito de andar descalças, mas lembro-me que naquela altura era proibido. Pagava-se 25 tostões se eram apanhadas (risos) (Mas em casa andavam descalças?) Não as deixavam. Tinham de andar com uns chinelos ou uma coisa assim. No caso do avental, era levado sempre pela criada de sala normalmente quando íamos a casa dos primos e eu até achava muita graça porque ela dizia: “A senhora manda dizer à senhora que manda muitos cumprimentos” (risos). Eu até acho que a Maria E. me dizia que usava este avental branco com um vestido preto e que o levou ao meu batizado.
Maria C.: A Maria E. é, para nós, a grande referência, porque foi lá para casa com 20 anos e ela era suposto ser criada de fora (a chamada criada de fora). Mas ela gostava de cozinhar e aprendeu com a Luísa e ela era uma doceira e uma pasteleira como não há! Eu ainda tenho receitas que ela me deu. E era muito engraçado porque ela tinha 20 anos e brincava com o meu pai no corredor e faziam corridas. O corredor tinha... 38 metros. De maneira que eles faziam corridas os dois. E também foi sempre uma referência para nós. E eu cheguei lá a passar uns dias de férias e ela fazia-me todos os dias uma receita de família. Muitas das receitas vieram do Brasil. Uma das receitas era o véu da noiva ou trouxa ...eram salgados. Eu tenho uma receita de família, de empadas, que veio do Brasil. E o timbale, que é um pastel de massa folhada, também foi ela que me ensinou a fazer e ela é para nós a grande referência como empregada porque… era uma pessoa de família. E ela contou-me no comboio que…A última vez que a vi ainda estava lá a trabalhar em casa da minha tia, já muito velhinha, e ela contou-me que elas só foram inscritas na segurança social e tiveram direito a um salário com o 25 de abril. Disse-me que recebiam 1500$00. Ora, quando eu fui lá foi em 1998, elas estavam a receber 3 contos por mês. 3 contos, 3 contos e quinhentos que elas ganhavam.
Luíza C.: Eu acho que elas ganhavam 150$00 quando eu era pequena. Na família do meu pai, era o meu avô que era carpinteiro e a minha avó que esteve em casa (Luíza mostra-me as fotos). Esta é a minha mãe e a minha avó materna.
Maria C.: É que as minhas avós eram irmãs. Os meus pais são primos direitos. A minha outra avó foi para aquele orfanato que havia ali entre P... Uma coisa muito conhecida que agora penso que está em ruínas…onde estão os depósitos de gás…nesse orfanato ela esteve desde os oito aos dezoito. Nunca tinha visitas da família. Esta fotografia é na casa do C. que agora não se visita porque foi vendida e deve estar para construção.
Luíza C.: Esta também era empregada lá em casa, mas era do outro lado, da minha tia. Era a Amélia.
Maria C.: A Amélia era tão pequenina que lhe fizeram uma … Quando eu nasci, ela só se dedicava exclusivamente a uma tia-avó minha que tinha tido tuberculose, e ela recebia a comida, tinha uma cozinha à parte onde lavava a loiça. Tratava só dessa minha tia-avó. Este meu avô ficou viúvo muito cedo. A minha avó teve 4 filhos e morreu com 32 anos. E ele casou com uma cunhada. Foi professor na Universidade de…. E a minha avó (o pai dela tinha muito dinheiro) e ela foi para a Suíça, para Davos. Esteve lá 3 anos para ver se melhorava e na altura chamavam-nos “tísicos” (hoje será pneumologia) e ele foi professor na Universidade. Ele casou com uma cunhada (a minha tia-avó) que foi minha madrinha.
Maria C.: Mas também foi um dos responsáveis pela instalação da assistência à tuberculose. Havia umas enfermeiras visitadoras. Na altura havia muita tuberculose, e eu lembro-me que essa minha tia-avó, que era minha madrinha, que depois descobriram que estava tuberculosa, nós não nos podíamos chegar perto dela para não nos contagiar. Depois a Amélia ainda ficou como empregada da minha tia-avó na Av. I. e lembro-me perfeitamente que ela era tão pequenina que tinha um caixote de madeira para chegar ao fogão. E nós quando éramos pequeninos, íamos lá visitá-la ela cantava-nos aquelas canções “Amélia vem…” e não fazia a mínima ideia de onde vinham aquelas canções, mas eu aprendi com ela. Antes dessa minha tia-avó ter ficado tuberculosa, um irmão do meu pai que era filho dela do segundo casamento (de onde nasceu uma rapariga e um rapaz) acabou também por ficar tuberculoso. E foi para o sanatório da Guarda. E até acho que eles tinham uns chalés para os doentes estarem porque a Amélia foi para lá. E a Amélia ele nem queria que ela chegasse muito perto porque tinha medo. Ele morreu em 1939 e ela contava muitas vezes que ele tinha medo que ela apanhasse e dizia: “Vai-te embora!” Eu tenho aqui cartas delas do sanatório a dizer do estado dele, como é que ele estava.
Maria Campos: Essa desgraçada da Amélia ainda foi tomar conta de um padre em G.!...ela era órfã, foi criada num asilo. Ela tinha umas mãos de fada, tinha umas mãos que faziam uns trabalhos magníficos. Tinha uma tal memória visual que às vezes a minha tia via alguma coisa numa montra, a Amélia ia lá, olhava, chegava a casa e tirava o bordado. E é engraçado porque ela tinha um sobrinho que foi ajudando e lhe fez o enxoval para ele ir para padre, e ele foi para padre. Uma vez fui ver uma palestra porque estava desconfiada que era ele, e no fim fui perguntar-lhe se não era sobrinho. E ele disse: “Sou!” e ficou até muito admirado. Ela devia ter muito jeito para os doentes, penso eu…O que nós chamaríamos hoje um “cuidador”. Cuidadora, neste caso. Mas o caso aqui é herdarem e emprestarem as criadas, não é? Alguém que herda, não é?
Luíza C.: Ela foi para lá de empréstimo e voltou outra vez para casa. (Não tinham costureira em casa?) Uma das filhas do feitor tinha ido para a costura. De maneira que ela é que fazia os arranjos.
Maria C.: Eles tinham um quarto de costura a que chamavam a “Sala da costura” que era uma sala para onde foi depois a televisão e até se ficava lá quando era preciso, mas era a sala da costura. Até porque houve uma criada lá em casa que eu ouvia falar, que era a J., que acabou por morrer também lá em casa. Chamavam-lhe “A Araúja”. Era a J. e era a “Araúja”. Devia ser Araújo de apelido.
Luíza C.: Há cinco ou seis empregados que trabalhavam lá em casa que estão no cemitério, num jazigo, que é muito bonito. É um monumento muito bonito. (e onde é que está disposto? Ao lado da família?)
Maria C.: Não está disposto ao lado da família, mas está pela família, não é? É mais bonito o jazigo dos empregados que o da família.
Luíza C.: O jazigo foi herdado pela minha bisavó e até está num lugar muito próximo da capela, onde tem uns leões e uma nossa senhora. É muito bonito. Tem duas pedras. E eu lembro-me de…ora o João, a Luísa, a Maria A., a Amélia, a Maria E.… O primeiro a morrer até foi o João, que eu me lembre…e se calhar até um bebé…tenho a impressão de que havia um bebé que morreu, filho do João, e é capaz de estar lá enterrado. (mostrando as fotografias) É este o dos empregados. E este é o da família. É até mais alto, mais projetado. Houve uma que pediram autorização para ficar lá, não foi? Foi a Maria E.. Ela tratava-me sempre por menina. Iam sempre embrulhados num lençol de linho. E ela disse-me: “Eu posso ficar com o lençol de linho?” E eu respondi: Ó Maria E., fica com os lençóis de linho que quiseres.”
Maria C.: Na realidade, elas ficavam lá em casa, sempre. Eu lembro-me ainda da Maria A.…
Luíza C.: (ainda vendo as fotografias) “Aqui a tal que esteve num convento.” “E aqui a que tratava da roupa. Morreu há pouco tempo. Morreu este ano, com 90 e poucos anos. Este é o pai da minha sobrinha e a minha mãe e a minha tia. Foi por causa dela que a minha mãe teve que casar.”
Maria C.: Ela era um bocado tenebrosa, era…muito religiosa! Contava-nos uma história porque tinha uma quinta em A. e o padre de F. tinha a quinta em frente. A. é uma pequena terra que tem uma quinta muito bonita. E aquilo só tinha uma entrada, uma quinta, tinha a do padre e tinha a Igreja. E o padre foi lá e disse: “Ai, Senhora Dona Maria L., coitadinhas das crianças, não têm escola lá na zona, a senhora tem a casa da quinta vazia… não se importa de dar umas salas para fazer uma escola para as crianças?”. E ela disse: “Ah, está bem, Senhor Padre e fruta também podem colher para comer.” Mas depois veio outra vez o Senhor Padre e disse: “Ah, Senhora Dona Maria L., as crianças mais pequenas precisam de um jardim infantil…” Ela olhou para ele (e era super católica) e disse: “Oh Senhor padre, eu já emprestei metade da quinta, agora o senhor tem a quinta em frente, empreste o Senhor!” (risos) Esta foi ama dela. Foi ama de leite, que depois foi para o Brasil, era a Felismina, e até tenho aqui… ela nasceu em 1897. A minha avó, eu vejo cartas dela em que ela se diz sempre muito cansada, e o certo é que teve os 4 filhos e acabou por morrer porque… quando ela morreu, o mais pequeno teria para aí dois anos. Os quatro filhos teriam a idade de seis, cinco, três e dois. Eu acho que ela não podia amamentar…eu acho que sim…como morreu e nas cartas está sempre muito cansada…. Já devia ter tuberculose. Depois de nascer a minha tia ficou grávida de outro filho, o meu tio C., e a minha tia ficou com a avó. Depois, mais tarde, a Felismina foi para o Brasil, a que foi ama da minha tia.
P: É curioso terem tantas memórias fotográficas…
MC: Sim, na família havia muitas fotografias e eles tinham vários álbuns e há muitas fotografias destas. Por exemplo, tenho uma da minha avó ainda muito novinha no Gerês. E sabe, depois as coisas acabam por se encaixar todas, porque a minha tia quando foi para a instrução primária foi para as Doroteias. Durante a Implantação da República, lá teve que regressar à base porque correram com os religiosos, e então veio uma professora para a minha tia do Luxemburgo que eu tenho muitas cartas dessa professora. Veio fazer a educação da minha tia, aprender o francês, pintar, tocar piano e acho que até aprendeu um bocado de alemão. E, entretanto, a minha tia cresceu, já não precisava dela, e houve uma condessa que arranjou que essa senhora fosse para a casa da Í… fazer a educação do Marquês de…. A senhora escreve à minha tia, conta a vida lá na casa da Í… e muitas vezes pergunta pela senhora Júlia Araúja. Ela era luxemburguesa e devia gostar muito dessa empregada porque pergunta nas cartas pela Araúja e fala muitas vezes nela. Devia ser no tempo da L., a cozinheira. Nas cartas, passa por Paris e diz o que se usa, quando vai ver a família depois da Guerra descreve aquilo tudo…e quando vai para a praia da granja, de férias, e as outras, pergunta sempre pelas empregadas.
Maria C.: Havia uma condição para todas elas serem empregadas da casa. Todas elas tinham que rezar muito. Ai isso era. Elas rezavam todas as noites o terço e tinham que ir à comunhão, à missa. E não podiam ser muito novas. Isso a gente acha que devia ser por causa dos meus tios (dos irmãos das minhas tias) serem rapazes, não é? E para evitar problemas. Elas tinham que ter pelo menos 18 anos, ou assim. Por acaso, a Domicilia foi julgo que com 15 anos para Coimbra, mas lás nessa altura não havia rapazes. (as empregadas sabiam ler, escrever? Tiveram essa preocupação?) Sim, tinham. Sabiam ler porque, se vir, podem estar mal escritas, mas escreviam cartas. Esta é de 1938 e elas escrevem. (leio uma referência à Prazeres). A P. é a tal que tirou farmácia, do feitor. Elas mesmo quando foram para o Brasil, não deixaram de escrever.
Maria C.: Esta carta é gira: “O P. só quer trabalhar oito horas, mas há um pedreiro em M. que trabalha 10 horas e é um bom pedreiro e é bom trabalhador e o mudo foi o que fez o forno de cavadas (já aqui está a reivindicação das 8 horas!) Isto é em 1939. O meu bisavô teve muito sucesso, até porque casou com a filha do patrão, e o patrão por acaso até era também lá de F. e ele chegou a comprar a casa, e remodelou-a. O meu bisavô comprou aquela casa. Ainda têm uma ramada com as vides que ele levou daqui para lá. E ela fez a tese dela com os documentos de família. A casa de família era daquelas senhoriais que tinham a adega de um lado e o celeiro do outro. Aquelas grandes arcas. E as tias eram beatas até dar por um… e então, elas tinham uma característica muito engraçada: elas davam catequese, lá em F.. E além de darem marmelada como merenda, compraram uma bola de cauchu porque elas gostavam muito de futebol. E então, nos intervalos da catequese, jogavam os mais velhos com uma bola verdadeira, para atrair os mais novos para a catequese. E ela arbitrava. Ainda hoje há muita gente que me diz que fazia catequese com as tias da casa. E tinham uma máquina de filmar e passavam os filmes. Primeiro com a lanterna mágica, e depois com a máquina. Elas nunca casaram, mas tinham esse aspeto…. Há até uma história de que uma vez estavam a ver o Clube F. a jogar, e ela olhou e disse: Falta o não sei quantos. Onde é que ele está? Estou aqui, minha Senhora. Por isso, elas gostavam de futebol. `Portanto, sendo elas muito católicos e sem querer casar, tinham uma versão muito engraçada…
Luíza C.: Eu tenho centenas de cartas e isso é como viajar no tempo…Por exemplo, uma vez o meu pai levou uma palmada e a criada ficou toda zangada porque tinham dado uma palmada ao menino.
Maria C.: Era uma vida difícil, a das mademoiselles, porque era um bocadinho acima das criadas. E ela fazia roupa, teria mais lugar à mesa. Ela ensinava línguas. Era, vá lá, mais especializada porque ensinava as línguas, ensinava a pintar, tocar piano… Por exemplo, guardo documentos em que se percebe que o patrão que tinham um criado e quando viu que o criado foi preso, disse que o criado que era dele e fazerem o favor de o libertar e darem-lhe duas vacas que tinha levado.
P: Regressando agora à relação entre o seu pai e a sua mãe, apesar de tudo, é uma relação com um final feliz, não é?
Luíza C.: Não…eu nunca vivi com o meu pai…ele estava sempre no estrangeiro. E depois a minha mãe acabou por ficar sempre cá e depois houve uma separação…assim…ele ainda pensou em levar a minha mãe, só que nessa altura a questão do estrato social era muito complicado…E a minha mãe era uma mulher bonita. Era uma pessoa cheia de vivacidade e era assim também um bocadinho fora da época, para ela. Mas casaram pela igreja e tudo.
Maria C.: Ah sim, as tias eram muito religiosas. A única pessoa que lá entrou sem ser casada fui eu. A minha mãe levou o R. lá. O meu pai tinha uns amigos que eram muito amigos e que moravam aqui no Bairro das C.. E eram casados pelo civil e a minha mãe não os deixou…O R., aos dois, não era batizado. E ela disse: eu sei que trouxe o filho do pecado cá a casa e a minha mãe respondeu: “Não, trouxe o meu neto”. Mas eu não era bem-vinda lá em casa. (Mas deve ter sido difícil manter aquele matrimónio) Ah foi, até porque ele nunca estava, e a minha avó vivia presa em F.
P: E quanto às horas das refeições?
Luíza C.: Eles comiam ao meio-dia e nós comíamos à uma. Havia uma panela com sopa e depois comiam bem. E ao pequeno-almoço também era uma malga de cevada e punham açúcar amarelo e comiam pão trigo. E também merendavam.
Em relação ao Norte, eu nasci numa casa enorme, uma casa que tinha quase 40 metros de comprimento e havia muitas empregadas, desde a cozinheira, criadas de sala, depois uma outra que se ocupava da roupa. (quer explicar melhor o que é uma criada de sala?) A criada de sala só serve à mesa - esta por acaso também ia às compras - e tem a incumbência de servir e ver se realmente a comida vinha em condições e, normalmente, auxiliava também a minha tia na roupa, no vestir. Como a casa era muito grande, havia mais duas que se ocupavam da parte de limpeza da casa e havia uma que era quase exclusivamente para passar a ferro, lavar a roupa, pôr no tanque, fazer as barrelas e assim. E havia também os criados do quintal. As empregadas viviam em casa e tinham os seus quartos lá em cima, nas águas-furtadas, mas os quartos não eram maus. E, no quintal, havia o criado que até era mais feitor. Havia um que só cuidava do quintal: de regar, de sachar. Mas esse que vivia no quintal era casado com a filha da cozinheira. Quando nasci, a cozinheira já era muito velhota. A cozinheira foi para lá quando o meu pai nasceu. Foi no fim do século XIX. E ela tinha uma filha (até tinha outra que vivia no Brasil). Ela era uma excelente cozinheira. Eu não tenho memória dos cozinhados dela. Ela já estava muito velha e quase sempre sentada numa cadeira, na cozinha, só para vigiar e assim. Descascava batatas, era o entretém dela, e estava ali sentadinha. E contava-me histórias. Eu às vezes gostava de estar sentada ao lado dela. Contava-me coisas do tempo em que era preciso ir buscar água e que era sonâmbula e que depois ficava muito aflita porque de manhã encontrava os cântaros todos com água. Eles estiveram numa casa em que eu penso que tinham que ir buscar água, mas como era pequena, havia pormenores aos quais eu não ligava. Então ela via os cântaros cheios de água e perguntava-se como aquilo tinha sido possível. Então, a ideia dela foi durante a noite amarrar um avental às pernas e, quando ia para se levantar, acordava… (para travar o sonambulismo). Ela morreu. Julgo que morreu em 1956, 57…ela até morreu de desgosto porque gostava muito do genro e ele tinha morrido. Ninguém lhe queria dizer nada porque ela já estava com muita idade e ela deve ter perguntado por ele (ele vivia no quintal com a filha) e algum de nós deve ter ido “O J. Morreu”. O certo é que ela morreu logo a seguir com o desgosto. Já devia ter oitenta e tal anos. (Portanto, ficou sempre na casa?) Ficou sempre na casa. Aliás, uma das filhas foi para o Brasil e a outra filha ficou lá (na casa). Eu penso que essa filha também trabalhou, em princípio, lá em casa. Quando a conheci já estava casada e tinha os filhos. O mais novo até tinha a minha idade. Os outros eram todos mais velhos. Ela vivia à parte com os filhos, mas lá em casa sempre os acolheram muito bem porque a filha mais velha tirou Farmácia. Uma das minhas tias era madrinha e gostava muito dela. O outro rapaz era afilhado de outro dos meus tios e fez até ao 5º ano antigo. Outra filha fez o 2º ano e não quis mais. Outra foi para a costura porque não queria e depois ainda tinha mais outro que só fez a antiga 4ª classe e também não quis.
Maria C.: A nossa família tinha muitas quintas. Dezanove. Foi o meu bisavô que as comprou. Foi para o Brasil, miúdo, e depois enriqueceu lá, e veio, e comprou 19 quintas e trouxe a família toda. E ele tinha uma quinta muito bonita que é a Quinta da M. (essa quinta fazia parte da família) e eu ainda me lembro de a ir ver. E aqui há uns anos atrás, veio cá uma prima nossa do Brasil, que não conhecíamos, e estivemos a ver a quinta. E o senhor, o caseiro, deixou-nos entrar e é que nos contou como era a vida deles. Por exemplo, eles eram caseiros, mas não podiam ter gado, só podiam gerir o gado dos senhores. Apesar de tudo, os caseiros tinham uma casa, não é?
Luísa C.: Conheci algumas casas que até eram muito boas, de pedra. As outras não sei…
P: E as relações entre o pessoal doméstico, como eram?
Luíza C.: Havia uma hierarquia, não é? Mas, por exemplo, a “Luísa cozinheira”, como a gente lhe chamava, tinha a filha que era casada com o feitor. Depois havia uma outra senhora cuja filha esteve lá como criada, casou lá, e continuou lá, mas já como externa. E havia a sobrinha desse senhor que tinha também uma sobrinha lá a trabalhar. Depois também havia uma senhora que estava lá como Dama de Companhia, mas também fazia assim umas coisas. Essa esteve num convento e acho que se deu muito mal, ou não estavam para aturá-la e mandaram-na para lá. (Imagino que à hora da refeição teriam uma mesa onde se sentavam todos?) Era. Havia uma grande mesa.
Maria C.: Eu já comi com eles nessa mesa!
Luíza C.: A mesa ficava assim encostada à parede, era grande, mas às vezes nem cabiam lá todos e depois comiam outros noutra mesa. Porque havia lá o do quintal, o filho, era o outro senhor que também lá trabalhava, havia a filha, havia uma que era prima, e havia outra sobrinha. A Maria Emília era sobrinha do senhor António. E a Domicilia era sobrinha da Maria Emília. (Em termos de funções?) Temos uma que se ocupava principalmente da roupa, de passar a ferro, lavar e também ajudava a fazer os quartos. A outra fazia a limpeza e também ajudava a fazer os quartos. Havia a de sala porque se fosse para fazer um recado ou ir a casa de alguns primos, era ela que normalmente ia. As criadas de sala normalmente é que iam. (Luíza mostra um avental): Isto já deve ser mais velho do que eu. Essa levava um avental branco. Faziam questão. A da cozinha, tinha o avental da cozinha, mas se tinha que ir buscar qualquer coisa à rua, levava um destes (mostra-me um segundo avental). Na parte de trás, as tiras cruzavam-se. A da cozinha, se tivesse que sair, tirava o avental para se calçar. Elas até gostavam muito de andar descalças, mas lembro-me que naquela altura era proibido. Pagava-se 25 tostões se eram apanhadas (risos) (Mas em casa andavam descalças?) Não as deixavam. Tinham de andar com uns chinelos ou uma coisa assim. No caso do avental, era levado sempre pela criada de sala normalmente quando íamos a casa dos primos e eu até achava muita graça porque ela dizia: “A senhora manda dizer à senhora que manda muitos cumprimentos” (risos). Eu até acho que a Maria E. me dizia que usava este avental branco com um vestido preto e que o levou ao meu batizado.
Maria C.: A Maria E. é, para nós, a grande referência, porque foi lá para casa com 20 anos e ela era suposto ser criada de fora (a chamada criada de fora). Mas ela gostava de cozinhar e aprendeu com a Luísa e ela era uma doceira e uma pasteleira como não há! Eu ainda tenho receitas que ela me deu. E era muito engraçado porque ela tinha 20 anos e brincava com o meu pai no corredor e faziam corridas. O corredor tinha... 38 metros. De maneira que eles faziam corridas os dois. E também foi sempre uma referência para nós. E eu cheguei lá a passar uns dias de férias e ela fazia-me todos os dias uma receita de família. Muitas das receitas vieram do Brasil. Uma das receitas era o véu da noiva ou trouxa ...eram salgados. Eu tenho uma receita de família, de empadas, que veio do Brasil. E o timbale, que é um pastel de massa folhada, também foi ela que me ensinou a fazer e ela é para nós a grande referência como empregada porque… era uma pessoa de família. E ela contou-me no comboio que…A última vez que a vi ainda estava lá a trabalhar em casa da minha tia, já muito velhinha, e ela contou-me que elas só foram inscritas na segurança social e tiveram direito a um salário com o 25 de abril. Disse-me que recebiam 1500$00. Ora, quando eu fui lá foi em 1998, elas estavam a receber 3 contos por mês. 3 contos, 3 contos e quinhentos que elas ganhavam.
Luíza C.: Eu acho que elas ganhavam 150$00 quando eu era pequena. Na família do meu pai, era o meu avô que era carpinteiro e a minha avó que esteve em casa (Luíza mostra-me as fotos). Esta é a minha mãe e a minha avó materna.
Maria C.: É que as minhas avós eram irmãs. Os meus pais são primos direitos. A minha outra avó foi para aquele orfanato que havia ali entre P... Uma coisa muito conhecida que agora penso que está em ruínas…onde estão os depósitos de gás…nesse orfanato ela esteve desde os oito aos dezoito. Nunca tinha visitas da família. Esta fotografia é na casa do C. que agora não se visita porque foi vendida e deve estar para construção.
Luíza C.: Esta também era empregada lá em casa, mas era do outro lado, da minha tia. Era a Amélia.
Maria C.: A Amélia era tão pequenina que lhe fizeram uma … Quando eu nasci, ela só se dedicava exclusivamente a uma tia-avó minha que tinha tido tuberculose, e ela recebia a comida, tinha uma cozinha à parte onde lavava a loiça. Tratava só dessa minha tia-avó. Este meu avô ficou viúvo muito cedo. A minha avó teve 4 filhos e morreu com 32 anos. E ele casou com uma cunhada. Foi professor na Universidade de…. E a minha avó (o pai dela tinha muito dinheiro) e ela foi para a Suíça, para Davos. Esteve lá 3 anos para ver se melhorava e na altura chamavam-nos “tísicos” (hoje será pneumologia) e ele foi professor na Universidade. Ele casou com uma cunhada (a minha tia-avó) que foi minha madrinha.
Maria C.: Mas também foi um dos responsáveis pela instalação da assistência à tuberculose. Havia umas enfermeiras visitadoras. Na altura havia muita tuberculose, e eu lembro-me que essa minha tia-avó, que era minha madrinha, que depois descobriram que estava tuberculosa, nós não nos podíamos chegar perto dela para não nos contagiar. Depois a Amélia ainda ficou como empregada da minha tia-avó na Av. I. e lembro-me perfeitamente que ela era tão pequenina que tinha um caixote de madeira para chegar ao fogão. E nós quando éramos pequeninos, íamos lá visitá-la ela cantava-nos aquelas canções “Amélia vem…” e não fazia a mínima ideia de onde vinham aquelas canções, mas eu aprendi com ela. Antes dessa minha tia-avó ter ficado tuberculosa, um irmão do meu pai que era filho dela do segundo casamento (de onde nasceu uma rapariga e um rapaz) acabou também por ficar tuberculoso. E foi para o sanatório da Guarda. E até acho que eles tinham uns chalés para os doentes estarem porque a Amélia foi para lá. E a Amélia ele nem queria que ela chegasse muito perto porque tinha medo. Ele morreu em 1939 e ela contava muitas vezes que ele tinha medo que ela apanhasse e dizia: “Vai-te embora!” Eu tenho aqui cartas delas do sanatório a dizer do estado dele, como é que ele estava.
Maria Campos: Essa desgraçada da Amélia ainda foi tomar conta de um padre em G.!...ela era órfã, foi criada num asilo. Ela tinha umas mãos de fada, tinha umas mãos que faziam uns trabalhos magníficos. Tinha uma tal memória visual que às vezes a minha tia via alguma coisa numa montra, a Amélia ia lá, olhava, chegava a casa e tirava o bordado. E é engraçado porque ela tinha um sobrinho que foi ajudando e lhe fez o enxoval para ele ir para padre, e ele foi para padre. Uma vez fui ver uma palestra porque estava desconfiada que era ele, e no fim fui perguntar-lhe se não era sobrinho. E ele disse: “Sou!” e ficou até muito admirado. Ela devia ter muito jeito para os doentes, penso eu…O que nós chamaríamos hoje um “cuidador”. Cuidadora, neste caso. Mas o caso aqui é herdarem e emprestarem as criadas, não é? Alguém que herda, não é?
Luíza C.: Ela foi para lá de empréstimo e voltou outra vez para casa. (Não tinham costureira em casa?) Uma das filhas do feitor tinha ido para a costura. De maneira que ela é que fazia os arranjos.
Maria C.: Eles tinham um quarto de costura a que chamavam a “Sala da costura” que era uma sala para onde foi depois a televisão e até se ficava lá quando era preciso, mas era a sala da costura. Até porque houve uma criada lá em casa que eu ouvia falar, que era a J., que acabou por morrer também lá em casa. Chamavam-lhe “A Araúja”. Era a J. e era a “Araúja”. Devia ser Araújo de apelido.
Luíza C.: Há cinco ou seis empregados que trabalhavam lá em casa que estão no cemitério, num jazigo, que é muito bonito. É um monumento muito bonito. (e onde é que está disposto? Ao lado da família?)
Maria C.: Não está disposto ao lado da família, mas está pela família, não é? É mais bonito o jazigo dos empregados que o da família.
Luíza C.: O jazigo foi herdado pela minha bisavó e até está num lugar muito próximo da capela, onde tem uns leões e uma nossa senhora. É muito bonito. Tem duas pedras. E eu lembro-me de…ora o João, a Luísa, a Maria A., a Amélia, a Maria E.… O primeiro a morrer até foi o João, que eu me lembre…e se calhar até um bebé…tenho a impressão de que havia um bebé que morreu, filho do João, e é capaz de estar lá enterrado. (mostrando as fotografias) É este o dos empregados. E este é o da família. É até mais alto, mais projetado. Houve uma que pediram autorização para ficar lá, não foi? Foi a Maria E.. Ela tratava-me sempre por menina. Iam sempre embrulhados num lençol de linho. E ela disse-me: “Eu posso ficar com o lençol de linho?” E eu respondi: Ó Maria E., fica com os lençóis de linho que quiseres.”
Maria C.: Na realidade, elas ficavam lá em casa, sempre. Eu lembro-me ainda da Maria A.…
Luíza C.: (ainda vendo as fotografias) “Aqui a tal que esteve num convento.” “E aqui a que tratava da roupa. Morreu há pouco tempo. Morreu este ano, com 90 e poucos anos. Este é o pai da minha sobrinha e a minha mãe e a minha tia. Foi por causa dela que a minha mãe teve que casar.”
Maria C.: Ela era um bocado tenebrosa, era…muito religiosa! Contava-nos uma história porque tinha uma quinta em A. e o padre de F. tinha a quinta em frente. A. é uma pequena terra que tem uma quinta muito bonita. E aquilo só tinha uma entrada, uma quinta, tinha a do padre e tinha a Igreja. E o padre foi lá e disse: “Ai, Senhora Dona Maria L., coitadinhas das crianças, não têm escola lá na zona, a senhora tem a casa da quinta vazia… não se importa de dar umas salas para fazer uma escola para as crianças?”. E ela disse: “Ah, está bem, Senhor Padre e fruta também podem colher para comer.” Mas depois veio outra vez o Senhor Padre e disse: “Ah, Senhora Dona Maria L., as crianças mais pequenas precisam de um jardim infantil…” Ela olhou para ele (e era super católica) e disse: “Oh Senhor padre, eu já emprestei metade da quinta, agora o senhor tem a quinta em frente, empreste o Senhor!” (risos) Esta foi ama dela. Foi ama de leite, que depois foi para o Brasil, era a Felismina, e até tenho aqui… ela nasceu em 1897. A minha avó, eu vejo cartas dela em que ela se diz sempre muito cansada, e o certo é que teve os 4 filhos e acabou por morrer porque… quando ela morreu, o mais pequeno teria para aí dois anos. Os quatro filhos teriam a idade de seis, cinco, três e dois. Eu acho que ela não podia amamentar…eu acho que sim…como morreu e nas cartas está sempre muito cansada…. Já devia ter tuberculose. Depois de nascer a minha tia ficou grávida de outro filho, o meu tio C., e a minha tia ficou com a avó. Depois, mais tarde, a Felismina foi para o Brasil, a que foi ama da minha tia.
P: É curioso terem tantas memórias fotográficas…
MC: Sim, na família havia muitas fotografias e eles tinham vários álbuns e há muitas fotografias destas. Por exemplo, tenho uma da minha avó ainda muito novinha no Gerês. E sabe, depois as coisas acabam por se encaixar todas, porque a minha tia quando foi para a instrução primária foi para as Doroteias. Durante a Implantação da República, lá teve que regressar à base porque correram com os religiosos, e então veio uma professora para a minha tia do Luxemburgo que eu tenho muitas cartas dessa professora. Veio fazer a educação da minha tia, aprender o francês, pintar, tocar piano e acho que até aprendeu um bocado de alemão. E, entretanto, a minha tia cresceu, já não precisava dela, e houve uma condessa que arranjou que essa senhora fosse para a casa da Í… fazer a educação do Marquês de…. A senhora escreve à minha tia, conta a vida lá na casa da Í… e muitas vezes pergunta pela senhora Júlia Araúja. Ela era luxemburguesa e devia gostar muito dessa empregada porque pergunta nas cartas pela Araúja e fala muitas vezes nela. Devia ser no tempo da L., a cozinheira. Nas cartas, passa por Paris e diz o que se usa, quando vai ver a família depois da Guerra descreve aquilo tudo…e quando vai para a praia da granja, de férias, e as outras, pergunta sempre pelas empregadas.
Maria C.: Havia uma condição para todas elas serem empregadas da casa. Todas elas tinham que rezar muito. Ai isso era. Elas rezavam todas as noites o terço e tinham que ir à comunhão, à missa. E não podiam ser muito novas. Isso a gente acha que devia ser por causa dos meus tios (dos irmãos das minhas tias) serem rapazes, não é? E para evitar problemas. Elas tinham que ter pelo menos 18 anos, ou assim. Por acaso, a Domicilia foi julgo que com 15 anos para Coimbra, mas lás nessa altura não havia rapazes. (as empregadas sabiam ler, escrever? Tiveram essa preocupação?) Sim, tinham. Sabiam ler porque, se vir, podem estar mal escritas, mas escreviam cartas. Esta é de 1938 e elas escrevem. (leio uma referência à Prazeres). A P. é a tal que tirou farmácia, do feitor. Elas mesmo quando foram para o Brasil, não deixaram de escrever.
Maria C.: Esta carta é gira: “O P. só quer trabalhar oito horas, mas há um pedreiro em M. que trabalha 10 horas e é um bom pedreiro e é bom trabalhador e o mudo foi o que fez o forno de cavadas (já aqui está a reivindicação das 8 horas!) Isto é em 1939. O meu bisavô teve muito sucesso, até porque casou com a filha do patrão, e o patrão por acaso até era também lá de F. e ele chegou a comprar a casa, e remodelou-a. O meu bisavô comprou aquela casa. Ainda têm uma ramada com as vides que ele levou daqui para lá. E ela fez a tese dela com os documentos de família. A casa de família era daquelas senhoriais que tinham a adega de um lado e o celeiro do outro. Aquelas grandes arcas. E as tias eram beatas até dar por um… e então, elas tinham uma característica muito engraçada: elas davam catequese, lá em F.. E além de darem marmelada como merenda, compraram uma bola de cauchu porque elas gostavam muito de futebol. E então, nos intervalos da catequese, jogavam os mais velhos com uma bola verdadeira, para atrair os mais novos para a catequese. E ela arbitrava. Ainda hoje há muita gente que me diz que fazia catequese com as tias da casa. E tinham uma máquina de filmar e passavam os filmes. Primeiro com a lanterna mágica, e depois com a máquina. Elas nunca casaram, mas tinham esse aspeto…. Há até uma história de que uma vez estavam a ver o Clube F. a jogar, e ela olhou e disse: Falta o não sei quantos. Onde é que ele está? Estou aqui, minha Senhora. Por isso, elas gostavam de futebol. `Portanto, sendo elas muito católicos e sem querer casar, tinham uma versão muito engraçada…
Luíza C.: Eu tenho centenas de cartas e isso é como viajar no tempo…Por exemplo, uma vez o meu pai levou uma palmada e a criada ficou toda zangada porque tinham dado uma palmada ao menino.
Maria C.: Era uma vida difícil, a das mademoiselles, porque era um bocadinho acima das criadas. E ela fazia roupa, teria mais lugar à mesa. Ela ensinava línguas. Era, vá lá, mais especializada porque ensinava as línguas, ensinava a pintar, tocar piano… Por exemplo, guardo documentos em que se percebe que o patrão que tinham um criado e quando viu que o criado foi preso, disse que o criado que era dele e fazerem o favor de o libertar e darem-lhe duas vacas que tinha levado.
P: Regressando agora à relação entre o seu pai e a sua mãe, apesar de tudo, é uma relação com um final feliz, não é?
Luíza C.: Não…eu nunca vivi com o meu pai…ele estava sempre no estrangeiro. E depois a minha mãe acabou por ficar sempre cá e depois houve uma separação…assim…ele ainda pensou em levar a minha mãe, só que nessa altura a questão do estrato social era muito complicado…E a minha mãe era uma mulher bonita. Era uma pessoa cheia de vivacidade e era assim também um bocadinho fora da época, para ela. Mas casaram pela igreja e tudo.
Maria C.: Ah sim, as tias eram muito religiosas. A única pessoa que lá entrou sem ser casada fui eu. A minha mãe levou o R. lá. O meu pai tinha uns amigos que eram muito amigos e que moravam aqui no Bairro das C.. E eram casados pelo civil e a minha mãe não os deixou…O R., aos dois, não era batizado. E ela disse: eu sei que trouxe o filho do pecado cá a casa e a minha mãe respondeu: “Não, trouxe o meu neto”. Mas eu não era bem-vinda lá em casa. (Mas deve ter sido difícil manter aquele matrimónio) Ah foi, até porque ele nunca estava, e a minha avó vivia presa em F.
P: E quanto às horas das refeições?
Luíza C.: Eles comiam ao meio-dia e nós comíamos à uma. Havia uma panela com sopa e depois comiam bem. E ao pequeno-almoço também era uma malga de cevada e punham açúcar amarelo e comiam pão trigo. E também merendavam.