Calar o corpo. Cuidar dos outros

Item

Tema

Trabalho Doméstico. Violência Doméstica.

Título

Calar o corpo. Cuidar dos outros

Entrevistado

Madalena Monforte (Nome fictício)

Resumo

Madalena Monforte começou a trabalhar de botins de borracha no campo, sem folgas ao domingo, levada pela mão do pai, em correspondência com uma geração largamente arredada da escola, em especial as raparigas pobres. Era o início da década de 1950, na zona de Sintra. Aos 13, aprendeu costura. Seguindo as pisadas da mãe, começou a tomar conta de crianças (e das tarefas domésticas) de famílias veraneantes, ali vindas de Lisboa, e também de fora do país. Imaginamos a idílica Sintra, e a magnífica Praia das Maçãs nos melhores postais ilustrados do país. Mas, opondo lazer e trabalho, servidos e servidores, pensamos poucas vezes na forma como desde há muito esse idílio é visitado por uma comunidade que em alguma década do século XX ali detinha casa, sem, no entanto, a habitar de forma permanente. Quem tratava das casas vazias e dos seus donos quando vinham a banhos? É essa uma das perguntas que nos vais conduzir a Madalena Monforte (nome fictício). Durante 43 anos foi ama, caseira e trabalhadora doméstica ao serviço de uma família proveniente da Europa central, comunicando em alemão, quando vinham em temporadas. Aprendeu sobre alimentos novos, novas técnicas de serviço e modos de uma cultura distante. Muito cedo, casou com um soldado de quem foi madrinha de guerra, sem o conhecer. Enquanto caseira, ali criou os seus filhos e ali se manteve, numa casa ao lado da principal, com o seu marido, a quem amou. As lutas que se travam na sua vida, de privação, mas também de ganhos de autonomia progressivos, são muitas. A maior delas foi a convivência diária e prolongada com a violência de que foi alvo por parte de quem lhe era mais íntimo. Madalena Monforte foi alvo de uma violência que teve expressão através da linguagem, como na dor física, e no corpo marcado, suscitada por problemas de alcoolismo do seu marido e pais dos seus filhos. Com vergonha, escondeu e subtraiu o conhecimento dessa violência aos filhos, durante décadas. Nos tempos em que o seu agressor perdeu a capacidade de se mover com autonomia, a sua vida ficou mais sossegada e defendida. Foram 43 anos ao serviço “sem um ordenado como deve ser”, um ordenado de lei. Nunca teve subsídio de Natal, nunca teve subsídio de férias e nunca teve férias.

Data de nascimento

março de 1946

Data de recolha do testemunho

25 de julho de 2022

Local de realização da entrevista

Distrito de Lisboa

Recurso

Transcrição de entrevista por gravação em áudio

Autor da recolha

Autor da recolha: Inês Brasão.
Transcritor da Entrevista: Joana Baptista

História de vida

P: Gosto de começar por perguntar onde é que nasceu, em que ano nasceu, …
Madalena Monforte: Eu nasci em casa, no M., lá em baixo… a aldeia grande que temos lá em baixo é o centro. Isto aqui já são tudo arredores. Embora aqui pertença a Sintra, não pertence lá em baixo, porque aquilo ali é uma coisa assim pequenina.
P: Um pequeno lugar, sim.
Madalena Monforte: E eu nasci em 1946, em março.
P: E os seus pais, o que faziam?
Madalena Monforte: Meus pais eram do campo, eram agricultores.
P: Lembra-se de os ver a trabalhar no campo?
Madalena Monforte: Sim, sim.
P: Os dois, portanto… A mãe não estava em casa, também era trabalhadora?
Madalena Monforte: Não, a mãe estava mais tempo em casa. A mãe começou por arranjar aquelas casas das pessoas que vinham para cá passar férias… Vinha para a zona muita gente passar férias.
P: Já era um lugar onde as pessoas vinham?
Madalena Monforte: Já, já. As pessoas alugavam as casas e iam para uma casinha qualquer que houvesse no quintal. Alugavam nos meses de verão para arranjarem dinheiro
P: E tinha irmãos?
Madalena Monforte: Tenho um irmão, mas é mais novo do que eu quase sete anos.
P: Considerava que era uma família remediada?
Madalena Monforte: Sim, sim.
P: Não tiveram propriamente carências... ou não se lembra de terem passado…?
Madalena Monforte: Quer dizer, a gente conseguia-se manter mais ou menos. Nasci quando acabou a guerra. Como a minha mãe dizia, tínhamos umas senhas para ir buscar as coisas.
P: Porque nesse período ainda havia racionamento, não é?
Madalena Monforte: Havia, havia sim.
P: Foi à escola?
Madalena Monforte: Eu fiz a quarta classe, a chamada quarta classe. Mas não fiz mais.
P: Porque…?
Madalena Monforte: Porque não havia dinheiro para isso, porque aqui não havia outras escolas a não ser a primária, e depois já era preciso ir para a zona de Sintra, Lisboa, por aí fora, como foi o meu irmão. Ele já foi estudar, embora os meus pais não quisessem, mas foi por incentivo da professora que ele foi tirar… ele é contabilista, formado.
P: Portanto, ele já pôde ir passar ao nível seguinte da escola?
Madalena Monforte: Já!
P: E se calhar apanhar um transporte para poder ir à escola e voltar?
Madalena Monforte: Exato, já passou daqui para o Cacém. Ia daqui de autocarro e depois de comboio.
P: Quer dizer que, na altura era um bocadinho longe, ou seja, as distâncias eram vistas de outra maneira, não é?
Madalena Monforte: Era, era! Arranjou-se lá quem dissesse mais ou menos o que é que ele andava por lá fazendo, ainda por cima ele era pequenito… ali fez quatro anos, parece-me. Depois passou para Lisboa e teve um ano na escola de Camões. E depois foi para o Instituto.
P: Que já era o de contabilidade?
Madalena Monforte: Já! Ao pé da fonte luminosa.
P: Sim, mas no seu caso, já vi que não houve ninguém que a ajudou a sair daqui…, lembra-se de ter tido pena, ou de ser uma coisa natural … Lembra-se de como foi, para si, essa experiência?
Madalena Monforte: Não, quando o meu irmão começou a ir mais para longe, eles disseram-me “Então, e tu também queres ir?”, e eu disse, “Eu não! Agora o que é que eu vou fazer ao fim destes anos todos para a escola, andar para trás? Não, vou andar para a frente, para mim já não merece a pena…”
P: Sim, correu muito tempo. Para si, então, não fazia sentido regressar àquele patamar?
Madalena Monforte: Não, não! Nem conseguia chegar àquele patamar! Até lá tinha de estudar muito…Embora as nossas quartas classes naquela altura fossem boas, ou melhores do que agora algumas coisas que a gente vê… a gente lembra-se de coisas que a gente hoje pergunta e eles não sabem responder, nem sabem sequer o que é…
P: Conhecimentos que tinham…
Madalena Monforte: Exato! A gente tinha muitos conhecimentos, e por exemplo, os livros, pelo menos da quarta classe, eram fantásticos!
P: E lê e escreve perfeitamente, ou seja, conseguiu ficar com as competências da leitura, da escrita, tudo?
Madalena Monforte: Sim, sim, tudo! E como eu gosto muito de ler, pronto, nunca perdi a leitura.
P: Sim, sim, já lá vamos! Mas, então, o que foi o seu percurso logo a seguir a perceber que não ia continuar a escola?
Madalena Monforte: Fui para o campo atrás do pai.
P: O que era uma filha andar no campo atrás do pai? É ajudar a fazer…?
Madalena Monforte: É ajudar a fazer as sementeiras, na vindima, na época do trigo, andar na ceifa… de tudo isso eu fiz.
P: Com outras crianças?
Madalena Monforte: Não, não! Criança era só eu! Não, não… das minhas colegas todas ninguém foi para o campo… os meus pais é que eram do campo, e eu atrás deles fui!
P: Claro, e uma vida dessas é levantar cedo…ou já lhe davam assim algumas folgas…?
Madalena Monforte: Nem ao domingo! (risos)
P: Nem ao domingo!? Não havia folga!? (risos) Às vezes a família ainda é pior, quando se trabalha com a família, não é? (risos)
Madalena Monforte: É, é, embora eles não fossem maus, não me tratavam mal. Não me davam tareia, a minha mãe dava. A minha mãe era… arisca…
P: O que se lembra dessa vida? Era levantar-se a que horas?
Madalena Monforte: Era levantar à mesma hora do que o pai e do que a mãe, às sete/seis horas, conforme a época em que a gente tivesse, não é? E pronto, depois tomava o pequeno- almoço, arrumava a casa toda e depois, a seguir ao almoço, ia levar o almoço ao pai e ficava com ele a semear batatas, feijão, …
P: Até ao pôr do Sol?
Madalena Monforte: Até ao sol pôr! Depois vinha para casa e pronto.
P: Quer dizer que perdeu um bocadinho também o convívio com as outras pessoas da sua idade?
Madalena Monforte: Sim, sim… só tínhamos, por exemplo, uma coisa que agora na mocidade não existe, e passado uns anos também deixou de existir, eram os bailes que a gente tinha… havia peças de teatro feitas cá, havia… vinham aí fazer o cinema mudo! (risos) E a gente ia ver! Pronto, eram as nossas… porque daqui para fora, eu pelo menos, nunca tive ordem de sair…
P: Nada que fosse para além da terra?
Madalena Monforte: Do círculo da terra… E não podíamos ir sozinhas! Não ia sozinha! Depois, quando o irmão cresceu, ia o irmão, ou então, por exemplo, ao domingo quando havia os bailes iam o pai e a mãe, pronto, iam sempre tomar conta da gente.
P: Mesmo nos bailes?
Madalena Monforte: Mesmo nos bailes…
P: Eu pensei que aí houvesse um pouco mais de… ou seja, não vigilância, mas não?
Madalena Monforte: Não, não! Era quando havia mais vigilância… porque durante a semana a gente estava no campo, não havia problema! (risos)
P: O pior é quando se juntam (risos)!
Madalena Monforte: O pior é quando as mocidades se juntavam, porque aquilo… tinha e temos uma sociedade de recreio, onde há desporto, … eu nunca tive ordem de ir para desporto, nunca tive ordem de ir para o teatro.
P: Mas se calhar, não havia essas vontades…
Madalena Monforte: Em mim havia essas vontades! (exclama alto) Só que não tinha ordem… eles não deixavam, ou então tinha de ir com companhia…
P: Eram aqueles medos…
Madalena Monforte: Nem sei de quê…porque a gente chegava a casa do trabalho, já não saímos para lado nenhum… só se saía ou ao sábado ou ao domingo, consoante o que houvesse para a gente poder ir…Mas é a vida no campo… dizem que é… é muito triste! (voz mais baixa e comovida) E dá cabo dos nossos corpos! Imagine uma rapariga com treze/catorze anos e com uma grande cesta à cabeça cheia de batatas, ou cheia de uva, ou cheia de…pesadíssima… vai tudo para baixo, não é? Os ossos não se desenvolvem…Eu andei sempre muito direita e hoje já está a querer ficar um bocadinho mais curvada… e tenho dores!
P: Pois, são as mazelas que ficam desse tempo…
Madalena Monforte: E depois fui aprender costura…
P: Isso já foi outra coisa que lhe aconteceu, então, e a que idade é que foi aprender?
Madalena Monforte: Fui aprender com treze anos. A partir dos treze fui aprender, mas era aqui.
P: Com uma mestra ou uma escola?
Madalena Monforte: Não, não, modistas daqui! Havia cá umas poucas e elas faziam… pronto, faziam os vestidos, faziam as calças, faziam os casacos, faziam tudo o que era vestuário! E a gente aprendia com elas.
P: Mas não quis ser costureira?
Madalena Monforte: Não.
P: Para onde é que estava o seu sonho, na altura? Consegue lembrar-se de alguma coisa que se tivesse conseguido… entrar ou alcançar…
Madalena Monforte: Não…
P: Não tinha os seus sonhos abertos?
Madalena Monforte: Não, depois não me deixaram viajar e fui aprender a costura. Mais tarde, comecei a trabalhar nessas pessoas que vinham de Lisboa passar cá as férias, para sair e fazer o verão. Trabalhei para mais que uma pessoa! Quando comecei fui ganhar 2 euros e meio… 2 escudos e meio… 25 tostões! Que era como a gente chamava!
P: Então, lembra-se da primeira vez em que foi… no fundo, tratar da casa. Era assim que se dizia?
Madalena Monforte: Era! Exatamente! Pronto, as pessoas vinham passar férias e a gente ia lá lavar roupa, passar a ferro… cheguei a fazer comida também, conforme as pessoas precisavam.
P: Era nova nessa altura? Que idade é que tinha?
Madalena Monforte: Catorze/quinze (risos)… a primeira pessoa para onde eu fui nunca me esqueci! Aqueles lenços que a gente usa, de pano… a senhora queria os cantinhos todos, todos ali unidinhos! Todos, todos! Acabei por aprender mais do que em casa!
P: Pela exigência que lhe pediam?
Madalena Monforte: Pois, e também pelas coisas diferentes que tinham! Porque eles vinham de férias, mas vinham de Lisboa! Lisboa era Lisboa, não é? Eles iam para a praia, eles traziam toalhas, eles traziam vários fatos de banho, coisas que a gente cá… eu nunca vesti um fato de banho!
P: Até hoje?
Madalena Monforte: Não, até hoje… não consigo! Não! Eu fui já, depois do meu marido, eu sou viúva… depois do meu marido ter morrido, o meu filho, que mora aqui mesmo ao pé de mim, insistiu, insistiu mais a minha nora e “vem e vem, vais mais a gente, vais com a gente, então e tu nunca vais para lado nenhum!”, e eu “não estou habituada a ir para lado nenhum, estou habituada a estar em casa, o que é que vocês querem que eu faça!?”. Eu nunca vesti um fato de banho! Quando muito, nós fomos pequeninas, que podíamos andar lá de cuequinhas que isto ainda não tinha aparecido! Podia andar assim… Assim que os meninos começaram a crescer, o pai proibiu, pronto!
P: Acabou-se a praia…
Madalena Monforte: Acabou-se a praia!
P: Estas pessoas que alugavam casas traziam objetos e roupas que não eram realmente nada…
Madalena Monforte: Daqui, não! Nada comparado com aquilo que a gente tinha!
P: Era interessante para si?
Madalena Monforte: Não sabíamos nada, porque a gente a maior parte do tempo andávamos descalços! Ah pois! (exclama alto) Comprava-se, por exemplo, pela altura do Natal, comprava-se uns sapatos e os sapatos eram arrumados! Calçava-se depois no dia do Ano Novo, na passagem do Ano Novo, calçava-se… depois era para a Páscoa, depois era assim só nestas datas lembradas. Mais certo era andar descalço ou usar uns tamancos… pesava mais do que eu quase, os tamancos!
P: Aqueles tamancos mais típicos do campo?
Madalena Monforte: Exato! Aqueles de madeira, mas que eu gostava… eu gosto. Isto para ir para a terra tínhamos uns botins de borracha…
P: Sim, que são fortes?
Madalena Monforte: São mais fortes e não deixam passar a água…. porque aquilo é até quase ao joelho.
P: Então, e diga-me uma coisa, quando começou essa casa, por exemplo, estabeleciam muitas regras…?
Madalena Monforte: Não!
P: como eram essa, ou essas famílias? Penso que num primeiro momento andava de casa em casa, é isso?
Madalena Monforte: Sim, normalmente eram três. Mas, pronto, é porque os hábitos eram diferentes dos da aldeia, não é? Muito diferentes! Por exemplo, quando eles iam almoçar a entrada era, por exemplo, queijo fresco ou coisa assim, que eram mesmo feitos cá na terra, que eu cheguei a fazer muitos, porque a gente tinha também vacas, e eles comiam o queijo antes da refeição e a gente ficava a olhar…
P: Porque na sua casa o queijo era depois, ou…?
Madalena Monforte: Não, tínhamos a sopa... Tinha de haver sempre sopa e depois comia-se o queijinho em cima com um bocadinho de pão e pronto!
P: Para a força do trabalho, sim. E a ordem da mesa, as roupas?
Madalena Monforte: Pois, cheguei a pôr uma mesa…O guardanapo ficava a uma distância do prato, o talher ficava a outra distância, aqui (exemplifica) fica o da sobremesa, depois a gente cá da aldeia não sabia, a gente sabia lá! Nem sequer sabíamos que existia talheres para sobremesa ou para o peixe… ninguém sabia!
P: Sim, e é engraçado que estavam de férias e mesmo assim tinham esses cuidados, não é?
Madalena Monforte: Tinham! Traziam…. Tinham é de trazer. Se queriam ter essas coisas diferentes, pelo menos para o comer, tinham de trazer, porque as pessoas cá não tinham.
P: E seriam famílias muito abastadas? Médicos, advogados, ou até podiam ser professores…?
Madalena Monforte: Alguns! Eu trabalhei num que eles tinham uma fábrica de madeiras em Lisboa.
P: Engenheiros?
Madalena Monforte: Pois, era sempre gente mais, pronto, com mais algum poder, alguma posse. Pronto, a gente cá não tinha posses para essas coisas…
P: Sim, sim, mas pagavam-lhe?
Madalena Monforte: Sim, só que a minha mãe tirava-me logo o dinheiro! Pagavam-me ao dia, normalmente era à hora, as horas que se fizesse, era o que eu ganhava. Mas eu chegava a casa quando recebia e tinha de entregar à mãe, e se eu não entregasse à mãe, a mãe ia lá buscar onde eu aguardava…
P: Isso custava-lhe?
Madalena Monforte: Muito! (voz amargurada) Ainda hoje existe aquelas revistas, assim pequeninas, que era a Maria e havia cá uma senhora velhinha, que era a vendedeira dos jornais e das revistas, e os meus pais não gostavam que eu lesse essas coisas, que “isso só traz é coisas que não prestam!”, pronto, e eu combinei com a senhora, guardar… que aquilo custava 25 tostões, “mas você nunca diga à minha mãe, ouviu!?” … Oh pá! Numa semana, não fui lá logo no dia buscar, ela viu passar a minha mãe e disse-lhe “Olha, leva isto para a tua filha, que ela tem cá guardado!” Oh meu Deus do céu! Que trovoada foi lá naquela casa! Tive de deixar de comprar…
P: Não queriam, se calhar, que lesse certas coisas…
Madalena Monforte: É, é… eu já entendia que, para eles, trazia certas coisas que podiam ser más para as nossas cabeças, ou sei lá, ou mudarmos de opinião e querer…
P: Querer sair daqui, talvez…?
Madalena Monforte: Pois, exato! E, então, tive de desistir… nem isso ela deixava comprar… (voz triste)
P: Alguma vez chegou a ver esse dinheiro?
Madalena Monforte: Não… (baixou o tom de voz)
P: Não foi para um enxoval, por exemplo?
Madalena Monforte: Para o enxoval tive eu depois de trabalhar no verão, mas isso eu já tinha outra idade… mesmo assim, guardei e ela foi lá buscar… só consegui ficar com os últimos 3 meses que eu trabalhei… eu fui em 1965, que foi quando me casei, é que eu consegui e eu depois disse-lhe a ela “Neste, tu não mexes!” Já tinha dezoito anos… e eu disse “Neste tu não mexes! Porque tu depois não me dás o que eu quero, e eu vou me casar para novembro, e eu preciso das minhas coisas!”, “Mas ah o que é que tu precisas!?”, ela tinha e ela gostava de comprar! Eu não tinha ordem na matéria…
P: Nem liberdade para comprar?
Madalena Monforte: Não, não… ela é que comprava tudo.
P: Pois, isso deve ter-lhe doído…
Madalena Monforte: Dói muito!... (voz trémula) Dói muito, porque depois, claro que, já mesmo naquela época, a gente queria uma loicinha melhor, um serviço de jantar, … e eu não levei faqueiros, eu não levei nada disso, só mais ou menos o necessário para ter na cozinha e essas coisas assim… o fogão que ela me deu, depois de me ter tirado tanto dinheiro, foi daqueles que só têm 2 bicos. E agora quero fazer um bolo, vou fazer um bolo aonde? Foi-me comprar uma forma, daquelas de tampa, com um óculo… queria fazer o bolo, tinha que estar lá a espreitar para ver se o bolo crescia ou não crescia… (risos) Ai, foi uma vida de muito sacrifício (volta a baixar o tom de voz) … muito, muito… Até me casar! Depois, casei-me aos dezoito…
P: Portanto, entre os treze/catorze e os dezoito o seu trabalho era…?
Madalena Monforte: Era no campo à mesma.
P: Era o campo, embora no verão tinham estas oportunidades, não é?
Madalena Monforte: É, eram essas oportunidades… e havia menos trabalho no campo. Já era mais apanhas de fruta e essas coisas assim, eles dispensavam-me.
P: Diga-me só mais uma coisa: nunca trabalhou em casa de famílias estrangeiras?
Madalena Monforte: Trabalhei. Trabalhei com uns americanos que vieram para cá passar férias e tinham um bebé pequenino e queriam uma pessoa para estar a tomar conta dele, mas esses já eram… tinham governanta, tinham cozinheira, essas coisas assim… e eu fui para lá nessa altura. Ora, eu casei em 66…. fui para lá em 65, a ganhar 800 escudos por mês. Que era muito bom! Naquela altura era muito bom! Comia, vivia e dormia em casa, porque era no Pinhal do Banzão, e eu vinha para casa, vinha dormir.
P: Tomou conta dum bebé?
Madalena Monforte: Tomei, chamado Mateus. No outro ano, eles vieram para cá outra vez, mas ficaram em São Pedro numa quinta. Mas vieram à minha procura! (exclama alto) Ainda hoje se me virem, eles vêm cá! Eles conhecem melhor a mim do que eu a eles (risos)... Ainda hoje vão ao meu encontro. Eles depois compraram cá a casa, depois já veio o filho,já claro um homem, não é? Vieram à minha procura para eu ir para lá para São Pedro, mas (baixa o tom de voz) … é uma tristeza, mas tenho de o dizer… não fui, o meu pai não me deixou! Não deixou porque eles queriam que eu ficasse, neste caso, como era lá para São Pedro de Sintra, lá para cima, para ao pé da Serra, não queriam que eu ficasse lá de noite, e os pais disseram “não!” … então, quer dizer, ia ganhar os mesmos 800 escudos, comidos e bebidos e dormidos lá e eles tinham de andar todos os dias para baixo e para cima para me vir pôr, porque eles não me deixavam vir de transportes públicos…
P: Queriam trazê-la… ou um chofer, não?
Madalena Monforte: Não, eram mesmo eles! Porque eles vinham da América, não traziam o chofer, só alugavam cá o carro e depois tinham-no cá. Mas… o meu pai disse sempre que “não e não!” e vinha me pôr ao sábado à noite… não, na sexta à noite! E eu ficava sábado e domingo em casa… e mesmo assim não me deixaram… eu disse “Oh pai, deixem-me ir! Qual é o problema? Pois, se eu vou, fico lá a semana ao pé deles, eles vêm cá pôr e eu preciso desse dinheiro que eu vou casar daqui dois ou três meses, então? Como é que é isso?”, “Não, não vais e não vais!” e o casal americano depois, com pena, arranjou uma casa, perto da praia das Maças.
P: Para poder ir?
Madalena Monforte: Para poder ir e vir todos os dias para cá! Também fui tomar conta de uma criança, mas esse era alemão, era tão ruim o rapaz… Ai! Tão mau, tão mau que ele era… Mas eu lá o dominei (risos).
P: Lá conseguiu (risos)… porque tinha jeito, com certeza!
Madalena Monforte: Sim! Sempre gostei de crianças, sempre… eu tenho dois filhos, mas já tenho quatro netos. Lá criei os filhos, lá criei os netos, pelo menos até aos quatro anos, alguns estiveram comigo… já criei sobrinhos, …
P: E como foi quando começou a namorar?
Madalena Monforte: A gente dantes havia a correspondência com as nossas tropas que estavam no Ultramar, éramos as madrinhas de guerra. Fui madrinha de dois. Fui madrinha de um colega e ele escreveu-me para cá, que eu nem sabia quem ele era… éramos da mesma terra, com 5 anos de diferença um do outro e eu não conhecia… “Quem é, quem não é!?”, ele lá também não me conhecia, mas eu também não sei como é que ele me escreveu! FiqueI sem saber por onde é que ele foi arranjar a morada… depois também fiquei a escrever-me com o rapaz que era dos madeireiros, lá de cima… não me lembro agora do nome da terra… só sei que ele se chamava Xavier (nome fictício) e o resto… já passou … E fiquei-me a escrever com ele, e eu pensava, “mas quem é ele?”, ninguém me sabia dizer…
P: Ninguém lhe conseguia dar uma resposta?
Madalena Monforte: Não. Pelo nome o que ele mandava, que era o nome verdadeiro dele, ninguém sabia dizer ser quem! Eu não tinha convivência nem com o pai, nem com a mãe dele. O pai até já nem existia, o pai morreu em 1961, quando ele estava na tropa em C.… Depois só fui à chegada dele, ao barco, foi o K. que vinha cheio.
P: Em sessentas e tais, não?
Madalena Monforte: Sim, 62/63… não! 63, mais ou menos! A gente namorou um ano e pouco… foi assim que ele chegou, eu fiquei encantada e ele ficou também!
P: Quer dizer, não o conhecia? Foi vê-lo a chegar?
Madalena Monforte: A chegar em Lisboa!
P: Porque estavam lá as madrinhas todas…
Madalena Monforte: É, é! Exatamente! Apresentou-me o meu outro afilhado, vinha também junto, estavam os dois em campo, ele esteve foi em Cabo Verde… ele estava para embarcar para a Índia, rebentou a guerra lá na Índia e ele já não foi. Depois mandaram-no para Cabo Verde e foi assim… ele esteve lá dois anos e pronto… depois casámos!
P: Foi um namoro à distância?
Madalena Monforte: Não, não foi namoro! Não, não, nem sequer o conhecia! Nem sabia quem ele era, nada! Era assim uma coisa… depois quando a gente foi ao cais em Lisboa, na espera a mãe dele é que me disse “Olha ele está ali! Olha está ali!”, ele ficou tão maluco quando viu a mãe, perdeu o boné! (risos) O boné caiu à água! Quando foi entregar a roupa ao quartel, teve de o pagar! E pronto, casámos depois em 65. A minha filha nasceu em 68, o 25 de abril foi em 74, e ele nasceu em 75! Já tinha vinte e nove anos quando o tive, eles têm bastante diferença um do outro.
P: Também casou muito nova, não é?
Madalena Monforte: Casei, mas também só tive a filha ao fim de dois anos. Depois, no casamento, é que foi o descalabro todo… (baixa o tom de voz)
P: Quer falar um bocadinho o que é que foi essa vida para si, essa tristeza?
Madalena Monforte: Depois de casar fui para um emprego que é chamado caseiros. Fui para lá, e fui para lá a fazer um ano de casada. E ficámos lá! Eu fazia o serviço. Eles eram estrangeiros, eram da Áustria e fizeram cá aquela casa… Eu é que fui estrear a casa, a moradia. E depois, olha, fomos ficando lá, eu fui fazendo sempre os trabalhos todos que eram precisos lá em casa, quando eles vinham de férias…
P: Portanto, ainda é aquela ideia que o caseiro fica numa casa própria com a família, não é?
Madalena Monforte: Não! Eu ao princípio fui mesmo para um quarto que existia na casa, que era o quarto para a criada, que tinha casa de banho incluída, própria. E depois era a cozinha, tinha a cozinha lá dentro, a cozinha era a mesma deles e minha.
P: Mas o seu marido não foi consigo?
Madalena Monforte: Foi, foi.
P: Então, ele dormia no seu quarto?
Madalena Monforte: Dormia, mas já estávamos casados! Eles aceitaram a gente porque a gente ainda não tinha filhos, percebe? De maneira que a gente fazia a vida de casal à nossa maneira, eles também estavam cá pouco tempo. Eles vinham em maio/abril e agosto. Nessa altura, até a esposa dele não vinha, a esposa dele só vinha em agosto, aí é que vinha o mês todo porque tinha três crianças e lá na Áustria não existe mar. É um país rodeado de outros países, só tem água doce, de maneira que ela vinha. Ele vinha em abril/maio sozinho. Foi assim que eu o conheci, eu fui para lá sem conhecer o casal, sem conhecer ninguém! Tive uma aventura assim um bocado esquisita, mas pronto…Precisava de dinheiro, eram 800 escudos por mês, com casa, água e luz, o que é que eu queria mais!?
P: E da parte do seu marido, não tinha nenhuma outra profissão?
Madalena Monforte: Ele era carpinteiro. Quando a gente se casou, o meu marido dava-me 500 escudos por mês e pagava ele a água e a luz. Depois… foi um bocado, assim, complicado… porque ele estava mal-habituado na boca, na comida e como tinha de levar comida com ele, não vinha almoçar a casa, só queria era bifes! Bifes e bifes! “Então e o acompanhamento?”, “Arroz, não quero! Farto de arroz lá do Ultramar até dizer chega! Que era todos os dias, de manhã, ao almoço e à noite!”, (risos) “Então, cozo uma batata!”, “ah! Com bife!? Quero lá batatas!”… levava só a carne, pão…
P: E porque gostaria assim tanto de bifes? Bifes é um artigo caro…
Madalena Monforte: Naquela altura não… naquela altura até era talvez …agora toda a gente diz que é cara, mas a outra da minha época, em comparação, era baratíssima! Pronto, pode-se dizer assim...
P: Vinha com esses requintes de comer certas coisas e isso começou a ser um problema entre vós?
Madalena Monforte: Começou. Porque, ao fim de semana, era cozido. Todo os domingos cozido e cozido! Ai credo… mas o cozido para ele era o porco, a vaca, os chouriços; e as batatas e as cenouras e o resto da hortaliça não se comia! “Então e agora o que é que eu faço à sopa!? Não posso deitar a sopa fora!”, Não tinha frigorífico, naquela altura, não é!? Houve um fim de semana que eu não fiz! Não fiz o cozido. E ele vai e diz assim…, eu nem sei o que é que fiz,… ele vai e diz assim “então hoje, não há cozido?”, “não.” “então?”, “Então, eu não estou para estar a comer a sopa toda e toda a semana sozinha e ainda ter de deitar lá para as galinhas da minha mãe, porque tu não comes sopa!”, eu não era capaz de comer uma panela de sopa dias e dias sempre a comer sopa e até porque não havia frigorífico, estragava-se, azedava-se! Naquela altura azedava menos do que agora, porque as hortaliças era tudo criado de maneira diferente, durava mais tempo, era completamente diferente… e não fiz! Depois houve dia, não sei porquê, eu não tinha jantar, não tinha nada, porque a gente tinha comprado consoante o que aparecesse na terra, naquela altura. Não havia estabelecimentos como há agora, não havia condições… só ao sábado e ao domingo (para vender, não é?). Pois, “E agora o que é que eu faço?”. Eu vou lá acima à minha mãe buscar ovos, a gente morava na mesma rua, e olha… eu fiz-lhe uns ovos e ele vai e diz assim “então, o que é que eu como mais?”, e eu disse assim “então, não chega?”, “claro que não! Onde é que isto chega!? Eu venho do trabalho!”, “então, mas quando vinhas do trabalho e ias para a casa da tua mãe, também era o que tu comias! Muitas vezes que eu cheguei a ver! E agora não chega!?”, “Ah é porque eu dantes, quando ia para a casa da minha mãe, já sabia que era esse o hábito, já ia meio comido de fora!” “Ah, isso é tu nunca me tinhas dito!” …. naquele dia ficou só com os ovos e foi à gaveta buscar queijo. Ao fim de 2 meses, apareceu-me bêbado em casa, que ele bebia muito. Mas eu nunca tinha visto! Só ao fim de 2 meses é que vi. Tínhamos uma casinha cá fora no quintal, onde ele metia a motorizada, que ele tinha uma Famel… e arrumou a moto lá dentro da casinha, foi para casa, sentou-se num banco à mesa na cozinha, não era nada disto, era uma casa muito pobrezinha também, e eu vi do quarto, eu já estava deitada, e eu vi pelo espelho do guarda vestidos que ele estava sentado à mesa. Digo assim “então tu não te vens deitar!?”, “eu quero comer!”, “mas eu agora não tenho comida!”, “mas eu quero comer!”. Começa a abrir os tachos e as panelas, e as gavetas, e não sei o quê, à procura de comer. Eu que estava casada há poucos meses …
P: Ainda tinha passado muito pouco tempo de vida de casados?
Madalena Monforte: Tinha passado muito pouco tempo! Eu levantei-me, vim à cozinha e ele “para que é que eu te dou o dinheiro!?”, e eu assim “porquê?”, “então, eu agora chego a casa e não tenho comida?”. Comecei a levar… (baixa o tom de voz) Eu só lhe disse assim “então, mas o que é que tu estás a fazer!?”, “para a outra vez tem cá comer em casa, que eu quando chego a casa quero comer!” e ele tinha um vício de comer mesmo! Porque ele mesmo bêbado, ele procurava por todo o lado comida!
P: Foi a primeira vez que foi violento?
Madalena Monforte: Foi. Foi a primeira vez que eu o vi bêbado e foi a primeira vez que eu levei assim, aqui na carinha. Depois, mais tarde, descobri que a minha mãe era uma mulher malcomportada… aí é que foi, aí então é que foi descalabro todo… Por tudo e por nada, pumba! Desde que ele fosse bêbedo para casa, eu levava sempre! Sempre, sempre, sempre! Quer falasse, quer não falasse.
P: Todas as razões eram boas para lhe bater…
Madalena Monforte: Todas as razões eram boas para levar!
P: E o sofrimento que isso começou a ter em si, não é? Partilhou com alguém?
Madalena Monforte: Não… (voz trémula), nunca. Nunca partilhei com ninguém foi, sempre para mim sozinha… Nem os filhos que depois começaram a aparecer, nem eles davam por isso, ele fez-me coisas… Meu Deus… enfim, nem é bom pensar (diz a sussurrar).
P: Tudo ficava em si, mas tanto tempo e… não viu nenhuma escapatória?
Madalena Monforte: Não, porque eu estava dependente também do dinheiro dele! O que eu ganhava eram 800 escudos, mas tinha a casa, a água e a luz, aquilo não eram 800, era muito mais, não? Ora, para mim daria, mas era se ele fosse embora! Ele não ia, não é? Depois quem é que lhe lavava a roupa, passava a ferro, e lhe aturava as bebedeiras… não tinha, e nem tinha casa para onde ir…
P: E, portanto, tudo se consumia naqueles hábitos…
Madalena Monforte: Tudo… quantas vezes eu dizia assim “dá-me o dinheiro”, ele nunca me dava. Por exemplo, chegar ao fim da semana, ou ao fim do mês, quando recebesse “olha este é para ti, e este fica para mim”, nunca me deu dinheiro, eu tinha sempre de estar a pedir! Sempre, sempre! E quando eu recebia o meu, lá de onde eu estava, do dele eu não via. Eu depois digo assim, “Epá, isto não pode ser! Como é que eu faço?”
P: Passaram-se anos?
Madalena Monforte: Passaram-se anos, anos e anos… (diz a sussurrar). Ele adoeceu em 1999, a 31 de dezembro, quando ele fazia anos. Até essa atura, desde os 19 até essa altura eu levei… não sei se todos os dias, mas quase todos os dias! E depois, então, por causa da minha mãe começou a vir a casa ver se eu estava em casa, e para onde é que eu ia, o que é que eu fazia… aquele tipo de perseguição, a ver “se posso confiar, não posso” …. eu às vezes dizia-lhe assim para ele “então, eu posso confiar em ti e tu não podes confiar em mim?”, “Não, a tua mãe…” e mais assim e mais isto… Mas o que eu lhe disse foi “olha, está calado, não me atires com a minha mãe, porque a tua também fez o mesmo ao teu pai!”, disse eu, e ele disse assim para mim “como é que tu sabes?”, “porque sei, só que nunca te disse nada, nem nunca te atirei nada à cara. Porque é que tu me fazes isso!?”. Eu não falo com ela, não falo com meu pai, não vou lá a casa… eu tive 20 anos sem falar com os meus pais!...
P: Porque também tinha acumulado algumas tristezas, mas depois ele não a deixou…
Madalena Monforte: Tinha! Tinha acumulado algumas tristezas da parte da minha mãe, porque eu tinha, por exemplo, 49 anos quando descobri que ela também quis… (faz uma pausa e baixa o tom de voz) Ai meu Deus, o que eu vou dizer, … também quis o meu marido! E eu, então, é que cortei, tive que cortar com eles! Ou eu fazia vida com os meus pais e não lhe ligava… mas também, a minha mãe e o meu pai já não me queriam lá em casa… “Estás casada, agora…”. E, no entanto, eu trabalhei junto com eles, mesmo estando lá em baixo nos meus patrões, eu trabalhei com eles até aos 28 anos… Sempre que eu podia, ia ajudá-los… e a recompensa foi que a minha mãe aos 49 anos bateu-me! (exalta o tom de voz)
P: Isso são muitas coisas acumuladas de não se sentir bem tratada, não é? Onde é que foi arranjar força?
Madalena Monforte: O meu pai não me dizia nada, mas… não sei … não sei, eu tinha uma alegria muito grande comigo.
P: Era uma pessoa com alegria de vida?
Madalena Monforte: Era, era uma pessoa que gostava de viver, que gostava de conviver, embora ele não… não me quisesse levar, por exemplo, para lado nenhum! Marcou uma excursão para Espanha só para ele! Foi de excursão a Espanha e eu fiquei em casa! Ao domingo, acabávamos de almoçar, ainda não tinha filhos nessa altura, e ele saía e ia embora… e eu assim, “mas para onde é que tu vais?”, “vou dar uma volta!”, “então se vais dar uma volta, espera aí que eu vou contigo!”, “ah! estou mesmo para aqui à espera de que levantes a mesa para ires comigo, era o que faltava!”, e eu fiquei. No outro domingo a seguir, “para onde é que tu vais outra vez?”, “vou por aí fora, vou dar uma volta!”, “então espera aí que eu vou também”, “então não tens a mesa para levantar!?”, “eu levanto quando chegar a casa!”, e fui! E foi assim que ele se habituou a levar-me com ele ao domingo, quando ele saía para qualquer lado...
P: Mas por insistência?
Madalena Monforte: Mais por imposição! Deixava a mesa, pronto…os patrões não estavam cá, porque quando eles cá estavam eu também não podia sair. Eles estavam cá tão pouco tempo que eu tinha de fazer lá sábados, domingos e feriados e… visitas e almoços e jantares… cheguei a ter lá 50 pessoas em casa deles.
P: Sim, já vamos falar um bocadinho sobre essa sua parte, mas diga, se conseguir…, ele se calhar nunca chegou a gostar de si, ou acha que gostou de si? Ou havia ali um misto?
Madalena Monforte: Havia um misto, porque eu tenho a impressão de que ele quando ia bêbado, não estava sozinho a beber, e os colegas, e os amigos dele, tinha muitos. Mas quando adoeceu ficou sem nenhum. Eram amigos, mas era da carteira deles.
P: Mas gostava de si?

Madalena Monforte: Sim, gostava porque há aqui uma rapariga que andou sempre muito atrás dele, quando ele chegou do Ultramar e, um dia, estávamos a conversar e ela disse “não o deixes, olha que ele adora-te!”.
P: Acha que era pelo álcool? Ou porque alguém disse que bater na mulher era algo…
Madalena Monforte: Isso não sei, mas sei que os colegas por causa da minha mãe o picavam, percebe? Depois quando ele chegava a casa com os ouvidos cheios e bêbado quem pagava era eu. Eu é que pagava, pois. Por isso é que eu hoje penso, não digo a ninguém, nem nunca disse aos filhos, porque é que a juventude de hoje é um caso que é um disparate e violência doméstica e não aguentam nada! Não aguentam porque elas têm um ordenado que a gente antes não tinha, não é? Embora eu, pronto, lá está, ele nunca deu o dinheiro por saber quanto é que eu ficava ao fim do mês, nem deixava de ter, era sempre: “hoje dá-me 100!”, amanhã era, “ah já gastaste tudo! Não tenho!”. Eu um dia fui à carteira e vi que tinha lá dinheiro! E depois pedi-lhe quando ele ia para ir embora para o trabalho: “tens que me deixar dinheiro”, “ai, eu não tenho”, “tens, tens!”, “foste-me à carteira!?”, “fui ver! E depois estás sempre a dizer que não tens, não tens chegas aqui sentas-te comes, mas não te lembras que é preciso dinheiro para comprar! Eu não sou obrigada a poupar o meu para te dar a ti! Eu casei contigo, mas não sou tua escrava, portanto, ou deixas dinheiro, ou hoje quando chegares ao almoço, não comes!”. Impus-me um bocado e, então, ele depois deixou. Quando eu pedia, deixava, mas quando eu recebia o meu, que o meu patrão tinha cá um procurador que o representava, e eu todos os meses recebia, e recebia em dinheiro! E ele sabia, e então nessa altura não me dava, “gasta do teu!”
P: Já não era para partilhar.
Madalena Monforte: Não, o meu já não era para partilhar e já podia comer à minha custa! Percebe? Mas eu fui sempre andando… “olha que eu já não tenho dinheiro”, “já gastaste o teu dinheiro todo!?”, “come menos!”, “tu dantes ficavas sempre calada, agora estás sempre a refilar!”, “o mal que eu fiz foi ter ficado sempre calada!”
P: Aí já tinha os filhos?
Madalena Monforte: Já! Já estavam grandes, já não era preciso coisas para eles, era diferente! Quando chegou a uma certa altura, a rapariga (filha) começou a namorar, qualquer dia também quer casar e depois que é do dinheiro? É que não tenho eu, nem tem ele!” Então o que é que aconteceu!? Comecei a enrolá-lo, a enganá-lo e comecei a guardar uma parte do meu ordenado, pronto, foi assim que eu consegui amealhar para fazer o casamento da minha filha… e mesmo assim, queria que eu lhe fosse comprar a roupa para ele! Eu fui para Lisboa, comprei para mim, comprei para o filho e, pronto, o dele foi os padrinhos, “então, mas não comprastes para mim!? “não te pedi dinheiro, pois não? Fui com o meu dinheiro, agora tu vais comprar o teu!”. Era só o que faltava, agora ainda ter de estar a vestir para ir para o casamento da filha! Oito dias antes ele foi ali ao mercado em São Pedro comprou lá um fato à maneira dele, e pronto… lá se fez o casamento. Mas quem pagou casamento fui eu!
P: E os filhos sempre um bocadinho sem perceber que estava a sofrer, não era?
Madalena Monforte: Nunca, nunca!

P: Isso também é muito impressionante, a sua capacidade de esconder, deixar a ideia de que havia alguma… fez isso por si e por eles…
Madalena Monforte: Porque sabe, ele batia-me e eu não me queixava, nem gritava com ele, nem dizia nada…. porque eles estavam a dormir e eles iam acordar! Eu cheguei a ter alturas de ter de galgar da minha cama para fora, para ele não vomitar para cima de mim… porque ele ia bêbado!
P: Que sofrimento…
Madalena Monforte: E depois deixou… não sei lá como é que o organismo dele se habituou àquelas porcarias todas que ele metia lá para dentro da boca para comer, que deixou de vomitar. Foi muito duro, há muita coisa que ainda não sai daqui …(baixa o tom de voz) Mas eu também sei que prefiro esquecer, porque eu também sei que gostava muito dele! Eu até há pouco tempo vi-me e desejei-me para me esquecer dele. Foi o único homem que eu tive. Nem antes, nem depois … o meu filho, um dia, disse-me assim …eu só estou aqui quase há 10 anos, o resto foi passado lá em baixo, na quinta, e o meu filho estava lá um dia a almoçar, conforme ia todos os dias, ele ficou com o negócio do pai depois…, mas também sabe o que ele me fez, o malandro… deixou-me 30.000 contos de dívidas. Só que tive a sorte que o meu filho seguiu a vida do pai, a vida do trabalho, que está aqui atrás, que é uma carpintaria. E ele agora fez uma nova, no terreno dele… e se não fosse o meu filho, eu não tinha nada disto! O meu filho é que se encarregou de trabalhar e pagar as dívidas do seu pai… quando o pai morreu já tinha as dividas, quando o pai morreu ele esteve a trabalhar sozinho 8 anos, ao fim de 8 anos estavam as dívidas todas pagas!
P: Quantos anos esteve casada?
Madalena Monforte: Eu já fiz essas contas no papel, agora já não me lembro de cabeça…
P: Mas foi em 1999 que faleceu o seu marido?
Madalena Monforte: Não, foi em 99 que adoeceu! Com um AVC hemorrágico… veio para casa com paralisias totais! Nem escrevia, nem falava, nem era capaz de comer, nem andava, fazia tudo nas fraldas… oito anos… oito anos! Oito anos que ele esteve doente. Nem falava, nem nada. Em casa depois, ia para a fisioterapia todos os dias, para Sintra, lavavam-no os bombeiros, para recuperar… porque ele teve tudo da parte direita. Que é o mais difícil de recuperar. E, então, mesmo assim lá na fisioterapia conseguiu, mas eu queria também a terapeuta da fala e não havia! E então a terapeuta da fala fui eu! (risos)
P: (risos) Não havendo, a gente também a gente aprende, não é!? Mas quase que o voltou a conseguir pô-lo a…?
Madalena Monforte: Falou, falou! Passando não sei quantos anos, começou a falar. Consegui pô-lo a falar e a fisioterapia pô-lo a andar, mas com um tripé. Teve de estar sempre emparado, andou muito tempo de cadeira de rodas. Depois eu ia às compras e queria que eu o levasse! E eu disse “não levo, era o que faltava! Agora subia, depois descia a empurrar-te a cadeira de rodas, nem penses!”, “ainda ias embora e me deixavas aqui”, “agora ficas tu! Ficas a tomar conta da casa!” Quantas vezes eu ia lá acima, à aldeia buscar as compras e ele dizia assim: “mas tens que ir às compras todos os dias!?”, “com certeza, então tu não comes à mesma todos os dias!? Tu comes todos os dias, não comes? Então tenho que ir buscar o que é preciso!”. E depois o meu filho fez uma coisa, passou a dar-me um x por mês, e

então já eu podia equilibrar mais as coisas. Quando o meu filho casou, já ele estava paraplégico.
P: Certo, certo, pronto, então agora vamos falar do último capítulo que é: vamos voltar ao facto de lhe terem dado a oportunidade de governar a casa, é assim que se diz? Era a governanta da casa? Como é que aconteceu? Que família era essa, como é que eles se afeiçoaram a si, o que é que era governar a casa…?
Madalena Monforte: Olhe, o estrangeiro… bem, eu não governava a casa! Eles tinham a governanta, ela é que orientava… tinha a governanta e tinha uma cozinheira. Mas aprendi muito com eles, eu conheci a nossa zona toda, desde a Ericeira a Cascais, e tudo mais, foi com eles! Porque eles a seguir ao almoço, ou antes, de manhã, saíam sempre e eu ia com eles, porque eu era a ama do menino. E foi assim que eu fiquei a conhecer o concelho de Sintra.
P: Esta casa onde vivia com o seu marido, foi a mesma onde foi ama?
Madalena Monforte: Não!
P: Ah! É dessa que eu agora gostava de falar.
Madalena Monforte: Onde eu estive 43 anos?
P: Sim! Porque era isso que lhe dava o seu sustento?
Madalena Monforte: Era, era! Eram os 800 escudos que eu ganhava ali, que eu podia, pronto, economizar alguma… ou ouvir ralhar por ter gastado tudo, porque eram 800 escudos, era muito dinheiro naquela altura! Era uma fortuna pode-se quase dizer! Portanto, havia outros caseiros como eu… eu ganhava mais do que os caseiros todos que havia por aí, estavam desejosos de me pôr de lá para fora, que era para irem para lá! Porque essa governava eu, sim senhora!
P: Então, e é sobre isso que eu agora quero que me fale, vamos ver a parte desse lado da sua vida. Como é que isso começou…?
Madalena Monforte: Olhe, isto começou porque é assim: o meu marido era carpinteiro e foi para lá fazer o madeiramento e essas coisas todas, por conta de um patrão que ele tinha, porque ele quando a gente se casou, não tinha nada disto… e fui e foi o patrão dele, que era o mestre de obras lá do prédio, que lhe disse que o procurador andava à procura de um casal que não tivesse filhos, que quisesse ir para lá tomar conta daquilo. E foi assim que a gente foi para lá. Portanto, eu quando fui para lá, não tinha casa. Fiquei dentro do prédio deles, da moradia deles. Só depois mais tarde, quando a minha filha nasceu, é que eles resolveram fazer uma casa fora da deles, para a gente ficar. Era uma casa comprida, pronto, era uma casa que tinha as condições para a gente estar lá. Depois veio a minha filha, que nasceu lá, nasceu mesmo dentro da propriedade da casa deles.
P: Com assistência ou sem assistência?

Madalena Monforte: Não, com assistência, tive uma parteira. E pronto, depois com uma bebé, pois é um bebé, eles não queriam barulho, os deles estavam habituados àquelas regras que eles traziam… chegando àquela hora não havia mais barulho nenhum. Iam para a cama às 5h ou 6h da tarde, ou às 7h, normalmente jantavam às 7h e depois às 8h já estavam na cama! Era a regra deles. E às 8h da manhã estava toda a gente sentada à mesa para tomar o pequeno-almoço! E tanto fazia estar pronto, como não estar, estava tudo sentado!
P: Mas quem fazia o pequeno-almoço?
Madalena Monforte: Era eu! Eu entrava para lá para o prédio às 7h da manhã, limpava a casa de jantar, limpava a sala e às 8 horas tinha de ter o pequeno-almoço na mesa para todos! Que eles eram cinco.
P: Portanto, isso fazia tudo parte das suas funções?
Madalena Monforte: Tudo! Pronto, eu ganhava aquele dinheiro, mas tinha…
P: Ia ao pão, ia ao café, ia buscar as manteigas, aquelas coisas todas, as frutas, …?
Madalena Monforte: Às compras iam eles.
P: Mas dizia que eles também eram frescos, o que é que isso quer dizer?
Madalena Monforte: Eram frescos porque eram muito exigentes!
P: É essa parte que eu quero saber, que é para a gente saber o que é que era a vida de quem trabalhava em casa desses senhores…
Madalena Monforte: Olhe, a minha patroa quando se levantava, chegava à casa de jantar, fazia assim às carpetes (barulho a levantar o tapete), todos os dias fazia isto! Um dia zanguei-me com ela. “Mas quem é que a patroa pensa que eu sou!? Eu não sou porca!”, “ó Madalena Monforte (nome fictício) …”, “não é Madalena Monforte, então a Madame está-me a levantar as pontas das carpetes para ver se eu ponho o lixo lá para baixo!? Eu não ponho!”. Era para ver se podia confiar, ou não! Chegaram-me a pôr-me relógios dentro da roupa suja, junto com a roupa suja… (Para testá-la?) Para testar! Que eles foram um ano, já não me lembro, saíram para fora daqui, foram a outro lado, ficaram cá as crianças comigo…
P: Os três?
Madalena Monforte: Os três, e eu quando fui buscar a roupa lá ao quarto para ir pôr a lavar, caiu-me o relógio no chão! Ai, valha-me Deus! Era só o que me faltava! Então agora estão-me a experimentar! Quando ele chegou, eu disse assim “Olhe, doutor não sei se o relógio está bom, se não! Que ele foi para dentro de água, foi de molho! Não precisa deixar as coisas para me testar, que o seu relógio está lá em cima da mesa de cabeceira! Eu não preciso do seu relógio para nada!”. E outras coisas mais…
P: E, por exemplo, puniam-na?
Madalena Monforte: Não, não!
P: Nada disso?

Madalena Monforte: Não, se não eu não admitia! Eu cheguei-lhes a bater o pé! Se eu tinha que os respeitar, porque é que eles não me respeitavam, não é? Eu acho que era a mesma coisa… eu era uma criada deles, mas não era nenhuma escrava! … aquilo tinha um jardim muito grande, tinha uma rega automática, o motor avariou, depois foram lá arranjar, mas o motor nunca mais estava bom. Um dia, por volta das 14h, mais ou menos, a senhora acabava de almoçar, ela ia vestir um biquíni, vinha para cá para fora para o lado, não era onde eu estava, era para outra frente e vinha para debaixo de uma palmeira que tem lá, e acho que ainda lá está, para tomar um sol. Eu vejo o motor a arrancar digo assim “ai que a desgraçada vai ficar toda molhada!”. Fui a correr, desliguei o motor. Sai-me ele lá da porta do quarto, que eles tinham uma porta do quarto para a rua, ele vinha maluco! E eu disse “então, mas o que é que eu fiz!?”, “não mexes mais no motor!”, “está bem, eu não mexo, mas a senhora estava a apanhar a água!”, “mas agora não mexe mais!” eh pá… ele falou na língua dele e eu percebi o que era…

P: É isso que eu ia perguntar, como é que se entendiam? O patrão conhecia algumas palavras do português?
Madalena Monforte: Eles arranhavam o nosso português e depois queriam que eu para eles falasse devagar, que era para eles perceberem, e eles para mim não falavam devagar! Ele dizia “mais devagar, porque se não, eu não percebo nada!”. Mas naquele dia, eu sabia o que é que ele estava a dizer, porque eu ainda aprendi alguma coisa, principalmente com as crianças… (do alemão?) Exato! O alemão que, segundo uma senhora, uma amiga deles, que me disse que se eu quisesse aprender alemão que não era com eles, porque eles têm um dialeto tirolês, pois eram do Tirol e não era bem o alemão verdadeiro. Mas a senhora ensinou-me certas coisas e eu sabia o que é que ele estava a dizer. Eu desalvorei pelo quintal fora e falei mesmo mal! E eles perceberam o que eu disse, mas eu também tinha percebido o que é que ele tinha dito! Eles viram que eu estava zangada, nunca me tinham visto assim, nunca! Mais tarde, depois, estava o dicionário fora do sítio. Eles foram à procura daquilo que ele me tinha chamado! Ela chamou, mandou… “a senhora disse alguma coisa?”, eles puseram a cara abaixo, eu fiz tudo o que tinha a fazer, não houve mais conversa nenhuma! Foi para eles verem, que lá porque eu não falasse a língua deles, não quer dizer que eu não compreendesse! Eu aprendi com os miúdos… eles queriam uma faca eu já sabia o que era, eles queriam uma colher, eu já sabia… porque eles não comiam connosco, eles comiam sozinhos, porque os pais não queriam… Para não verem certas coisas que as crianças fazem! Comiam 1 hora mais cedo, os filhos, e depois eles comiam mais tarde. E eu já sabia o que era um bolo, o que era um biscoito, o que era uma faca, um pato, um copo, essas coisas triviais que a gente usa e, principalmente, com as crianças, ainda mais. E naquele dia nunca mais me falaram como deve ser. Jantaram lá à maneira deles, sozinhos, não me disseram nada. Só foi para despachar os miúdos para irem para a cama. E houve uma zanga, essa é que foi mesmo uma zanga a sério! Que eu tive com ele. Ele tinha recebido um pagamento para ele fazer ir lá um carro despejar as fossas, que naquela altura ainda era os carros que vinham para despejar. Dei-lhe dois dias antes do prazo terminar e o homem não foi pagar! Não pagou aquilo. Eu soube, depois, que ele não pagou porque já não tinha dinheiro do meu patrão porque estava para se ir embora e o meu patrão nem mandou mais dinheiro. Eh pá, ele vem lá de Sintra, foi chamado a Tribunal, teve de ir a Tribunal por causa disso. 750 escudos, vejam lá bem!
“Porque a Madalena Monforte está cá, mas não faz nada! Durante o tempo que eu não estou cá, não quer saber nada disto!”, e eu disse “não é assim! Eu entreguei ao doutor José (nome fictício) o recibo para ele ir pagar o despejo das fossas com 2 dias de antecedência. Porque que é que ele não foi, eu não sei!”
P: Pois, a sua função foi cumprida….
Madalena Monforte: Exato, eu entreguei-lhe aquilo que me chegou às mãos. “Mas foi a Madalena Monforte!”, “não fui eu!”, “mas foi! A Madalena Monforte não fez as coisas como deve ser e agora eu tive de ir para Tribunal!”, “então vá pedir contas ao doutor José, porque não foi por minha culpa!”, e eu disse para ele assim diretamente mesmo, naquela altura já estava com os cabelos em pé e tudo, disse para ele “olhe, doutor eu mentirosa não sou! Portanto, enquanto eu disser a verdade, a mim o doutor não me manda calar!”, e ele vai mandou-me para a rua… na língua deles, e eu disse “vou-me embora, mas já não volto cá dentro, nem para servir o almoço, nem para nada! Só se forem à minha casa chamarem-me!”, e fui-me embora para minha casa e não fui lá mais. Isto foi ainda no tempo da primeira mulher, que era a mãe dos filhos, que ela morreu. Às tantas aparece lá ela, “Ó Madalena Monforte, vai lá a casa. Está a mesa ainda por levantar.”, que a Alice (nome fictício) que era a cozinheira que lá ia, pois o José dava vencimento a tudo… fazer comer com 3 crianças, e eles os 2, eram 5, com 5 da minha casa eram uns 10! E então meteram uma cozinheira e como a cozinheira era só x horas, já estava a passar da hora dela, ela tinha de ir lá chamar-me! “Está bem, Madame, se tiver que me chamar, eu vou.”. Depois andava eu a levantar a mesa e ela atrás de mim “ó Madalena Monforte”, “diga” “ó Madalena Monforte, isto não foi nada, não foi nada…”, “foi, foi! Para mim foi!”.
P: Sentiu-se desrespeitada e acusada injustamente?
Madalena Monforte: Senti! E eu disse para a patroa “Não, não! E agora vou-me embora e a Alice lava a loiça e a arruma que eu não volto cá mais!”, e ela disse “ó Madalena Monforte, desculpa o senhor doutor”, “não!”, “ó Madalena Monforte, desculpa-o, ele está com dor de dentes…”, “Vá ao dentista!”
P: Mesmo assim já havia confiança para lhe dar essa resposta?
Madalena Monforte: Já! Já havia, já! Ao fim ao cabo eles eram liberais no lidar… queriam era a tal coisa! São do tempo da guerra dos alemães! Não sei se me faço entender… E a casa deles tinha… Eles é que eram verdadeiros! A gente era os criados…Não tínhamos razão nenhuma, não é!? Pronto… a casa deles é assim: faz de conta que daqui era a sala de aliera a casa de jantar, e ele estava na sala deitado no sofá, com o seu grande charuto, que era o que fazia, e ele ouviu muito bem o que eu disse que eu até falei mais alto! “Está com dores de dentes vá ao dentista! Eu não tenho a culpa! Mentirosa não sou…”. Pronto, ficou a conversa arrumada por ali… não se falou mais. E depois ainda foi uma boa…. ai eu tenho tantas, meu Deus!
P: Mas há umas que ficam mais na memória, não é?
Madalena Monforte: Ficam, e depois com o passar dos anos também vai passando… também tenho mais uma coisinha, até tenho duas e há de haver muito mais! Veio uma cozinheira de Lisboa, foi arranjada por uns amigos deles, que eram os Pereira Melo (nome fictício) e veio de Lisboa. Ela era uma cozinheira boa! Daquelas que desmanchavam um frango, não ficavam um osso agarrado ao frango, mas o frango ia para a mesa armado, Tal e qual como se tivesse inteiro! E a carcaça ficou cá, na cozinha…Ela era… meu Deus do Céu!
P: Mas cozinhava bem!
Madalena Monforte: Cozinhava, cozinhava! Isso então… Jesus! E depois armou o frango inteiro sem tirar um alfinete!
P: Tinha o hábito de beber?
Madalena Monforte: Ela foi a abrir uma garrafa lá dentro! Levou a garrafa lá para o quarto! (risos) A garrafa deu-lhe um trabalhão para abrir! E quando abriu ficou o vinho todo espalhado pelo quarto (risos)! Eles depois acabaram por a mandar embora e quando foram sair, eles disseram “ó Madalena Monforte, vê lá como é que ela faz as coisas para ir embora, não leve ela alguma coisa nossa!”, “Não, senhora doutora! A mulher não leva nada…”. E foi embora naquele dia. Nesse dia era um frango! Ela desarmou-o todo, armou- outra vez, e a carcaça ficou na cozinha. A patroa vai à cozinha (a primeira patroa) e vê lá a carcaça do frango, que ainda tinha uns bocadinhos agarrados, não é? Uma pessoa também não é assim tão perfeita, que consiga tirar tudo! E ela era assim para mim “ó dona Madalena Monforte…”, “diga, o que é que você quer?”, “leva aquilo para a sua casa, para você? aquilo ainda dá qualquer coisa para si!”, e eu disse para ela “Não levo! Você sabe muito bem o feitio que ela tem, e a patroa daqui a bocado aparece aí à procura da carcaça do frango!”, “Não aparece nada, isto não presta para nada!”. Ai meu Deus do céu! Já eu estava em casa, aparece-me ela à procura do frango! Até à minha cozinha foi! Mas a cozinheira foi lá pôr e meteu dentro do meu forno. Ela não via nada. E eu disse assim, “mas o que é que a Madame quer?”, “a carcaça do frango!” … “o osso do frango!”, assim é que ela disse!, “o osso do frango? Está aí que a cozinheira veio aí pôr, mas para não ficar às moscas, meteu dentro do meu forno!”. Tinha visitas nesse dia… e portugueses! “Mas porquê?”, “porque eu quero isso, porque amanhã dá uma omelete para o doutor!” “Ai é!? então pode levar, tome!”. Ela não levou. Mas eu fui atrás dela, entrei, deixei aquilo lá na cozinha, e fui direito à sala! Ele apanhou uma cachola que nem queira saber… o homem parece que se tivesse um buraco, tinha-se enfiado, com certeza! E digo assim para ela, “olhe Madame, a carcaça do frango, os ossos do frango, já estão lá na cozinha! Porque eu não preciso da sua comida! A Madame não me dá comer, mas eu também não preciso da sua comida para nada! Além disso, são restos… agarrados ao osso! Eu tenho na minha casa mais comida do que a Madame tem no seu frigorífico, portanto, eu não preciso do seu comer para nada!”, e virei-lhe as costas. Imagine isto com visitas portuguesas…
P: Claro, mas também se sentiu ofendida, não é?
Madalena Monforte: Sim, porque ela foi na coisa que eu é que tinha…
P: Por causa de uns restos foi à sua casa, saber da carcaça do frango?
Madalena Monforte: Foi! Foi à procura dos ossos do frango, pois…
P: Era gente…
Madalena Monforte: Riquíssima! Tinham fábricas de têxteis…Eu não precisava daquilo, mas pronto, não outro dia também não ia deixar estragar aqueles bocadinhos que estavam, não é! Ora no outro dia, ela mandou a cozinheira fazer uma omelete daquelas. O meu Patrão não lhe tocou! Não comeu!
P: Mas para lhe dar razão a si?
Madalena Monforte: E porque ele também não gostava de restos! Não gostava! A vergonha que ela o fez passar. Ele, pelo menos, passou, não é!? Por causa dela, por causa de uma carcaça de um frango, que tinha um bocadinho aqui e um bocadinho ali…
P: Havia muitas outras regras que se lembra, ao longo destes 40 anos, que teve? O que é que estipulavam como obrigações? Por exemplo, tinha de andar de uniforme?
Madalena Monforte: Não, não! Eu quando tinha visitas, simplesmente punha um avental branco, mais nada.
P: Das competências todas que tinha, portanto, o que eu vejo é: os miúdos, cuidava deles, não é? A parte da limpeza?
Madalena Monforte: Tudo! E olhe que eram 4 quartos, 5 casas de banho, uma sala e um salão maior do que isto tudo aqui. Eu sentei lá 80 pessoas, só dentro da sala!
P: Esses dias são os dias em que a pessoas não esquece, não é? Conseguir ser capaz de arranjar um evento, e tudo às suas costas…
Madalena Monforte: O evento foi para mim… (risos)
P: Porquê!? (risos)
Madalena Monforte: Porque eu criei desde os 11 anos um sobrinho do meu marido. O pai morreu, e o meu marido entendeu que ele… ele tinha era madrasta, e o meu marido entendeu que a madrasta não tinha capacidades para o criar, e foi para a nossa casa.
P: Ah, por isso é que há bocadinho disse que eram 5 lá em casa! Porque ficaram com ele, com esse menino…
Madalena Monforte: Desde os 11 anos até ele casar! E então, como eles não vinham cá nessa altura, eu fiz o casamento lá! Para não gastar tanto dinheiro, fiz o casamento lá dentro do salão… eu sentei 80 pessoas à mesa, do casamento dele. E eles nunca souberam…Dizia o meu marido assim “estás a arranjá-las, estás! Mas depois vais ver como é que é…”, e eu disse “tu também vais ver como é que é, o sobrinho é teu…”. Tanto que o meu filho está cá… pelo meu marido não queria mais filhos, e eu disse para ele “mas porque é que a gente não há de ter outro filho nosso?”, “porque somos 5!”, “mas o teu sobrinho não é meu filho!”, dizia eu para ele, “eu estou a criá-lo por ti! Porque ele a mim, não me é nada! Eu não o vejo há meses… ele mora lá m cima e não vem à casa da tia…”
P: Não tem essa necessidade…
Madalena Monforte: Não, não tem. E pronto, e eu meti lá 80 pessoas! Está a ver, um salão enorme! E ainda tem depois a casa de jantar agarrada à sala! Eu na casa de jantar não quis que fosse para lá ninguém, porque eles tinham muitos… Tinham muito prato antigo! Muita antiguidade, muito tudo, tudo antigo! Não tinha uma peça moderna! Até coisas a cair…

pronto, era a ideia deles. E eu não quis que fosse para ali ninguém, que ainda me partiam algum prato, depois… Depois é que estava bonito! Pratos de 100 contos e tal!
P: Portanto a patroa, ela tinha atividade?
Madalena Monforte: Não, não!
P: Ela era dona de casa?
Madalena Monforte: Mais nada! O trabalho dela era levar os meninos à praia, ir às compras, quer dizer, gostava…. já a segunda mulher dele também. Gostava de fazer as compras, e pronto…
P: Mas não ficou assim nenhum… não sinto assim também ficado um laço, nem de amizade, nem nada, pois não?
Madalena Monforte: Não, eles não são pessoas de criarem amizades com ninguém.
P: Não criaram essa ligação, nunca?
Madalena Monforte: Não que eles depois acabaram… eu estou aqui quase há 10 anos, porque eles acabaram por vender a propriedade e foram embora para a Áustria…
P: E nem os filhos que ajudou, também a tomar conta, nem nada?
Madalena Monforte: Houve uma das filhas que ainda veio por aí 2 vezes, mas à segunda vez, eu já não estava cá e também não me preocupei em procurá-la… eu nunca mais os vi. Nunca mais disseram uma palavra, nunca mais disseram nada… e para receber 10 000 contos, 5000 mais 10 000 de indemnização, foi preciso meter um advogado. Não queriam dar nada…
P: Ou seja, queriam despedi-la, mas sem a indemnização, é isso?

Madalena Monforte: E eu estive lá há 43 anos, sem um ordenado como deve ser, nunca tive um ordenado de lei, que era o ordenado mínimo, nunca tive subsídio de Natal, nunca tive subsídio de férias… Nunca tive férias! Imagine se eu fosse pôr tudo em cima! E a minha advogada depois disse “Oh Madalena Monforte veja lá se consegue arrancar-lhe qualquer coisa!” e ele dizia assim, “mas eu não sou obrigado a dar nada à Madalena Monforte!” “é, é!”, “não sou, a Madalena Monforte nem sequer tem caixa…”, “Ah, isso é que tenho!”, “Não tem caixa, eu nunca assinei nada!”, “nem foi preciso estava cá o seu procurador nessa altura, ele assinou!”, “então e depois?”, “Depois paguei eu esses termos todos, assinei as folhas, fui lá entregar e nem precisei de si para nada! Mas vá lá acima a Sintra, vá à procura, que eu estou lá como sua empregada. Portanto, quer que eu o meta em Tribunal, o trabalho é o mesmo, eu meto-o e depois, então, em vez dos 10 000 dá-me uns 50 000 ou mais!”.
P: Não lhe queriam dar nada?
Madalena Monforte: Não, nada. São secos! Muito secos… Até para os próprios filhos, ele foi…

P: Sim, uma relação de…, mas apesar de tudo, agora estava a falar, quando começamos a conversar, que apesar de tudo aí tinha o seu poder, não é?
Madalena Monforte: Ao princípio eles não me davam poder para nada. Só para comprar as coisas.
P: Tinha alguma autoestima, porque era o que sabia fazer, não é?
Madalena Monforte: E se eles não tivessem, viam-se aflitos para arranjar outra pessoa, se eu desse certas informações que eles eram… quem é que queria ir para lá? Pelo dinheiro não queriam!
P: Mas acha que pelo feitio aquilo não era fácil?

Madalena Monforte: Não, ninguém aguentava aquilo. Eles estavam pouco tempo, mas aquilo que eles faziam era suficiente para…
P: Muita exigência?
Madalena Monforte: É. Aquilo quando eles chegavam tinha de estar tudo, tudo, tudo impecável! Um ano, eu disse-lhe assim “oh senhor doutor, eu vou tirar férias.”, “oh Madalena Monforte, não vai…”, “vou, então!? Nunca tive férias, vou tirar férias!”, “então e depois?”, “depois o quê!? Depois isto fica aqui! Eu não levo nada disto para férias, não levo nada disto comigo!”, “ah, mas a Madalena Monforte fica de férias…” “ai eu fico de férias? Quando?”, “quando eu me vou embora… eu estou cá um mês, vou embora, só venho dali a 2 meses…”, “ah pois é! E eu tenho férias nessa altura!?”, “pois, a Madalena Monforte fica aqui com isto tudo, fica à vontade, fica sozinha, faz o que quer…” e eu disse-lhe para eles “faço o que quero? Não. Eu não faço o que quero. Eu tenho que pôr a sua casa em ordem outra vez, porque vocês o tempo que estão aqui, seja uma semana, sejam duas, seja um mês, vocês deixam tudo sujo, tudo estragado! E eu não faço nada!? Vocês deixam três ou quatro máquinas de roupa para lavar, que eu lavo na minha máquina! Nem sequer máquina têm!”.
P: Não tinham máquina?
Madalena Monforte: Não! Nada! Era tudo à mão! Depois como nasceu o meu filho, eu encarreguei- me de comprar uma máquina para pôr na minha casa, porque era roupa demais, eu já não aguentava! Naquela altura nem sequer se usava fraldas descartáveis, eram fraldas de pano… Eu disse “eu assim não aguento! Temos de ir comprar uma máquina para lavar roupa, para pôr aqui em casa.”. Depois eu comprei uma máquina de lavar roupa, e eu disse-lhe nesse dia “o senhor doutor vai-se embora, deixa-me duas ou três máquinas de roupa para lavar, que eu lavo na minha máquina! Na minha! O senhor doutor não tem! Nunca comprou nenhuma, pois não!?”, não fosse ele também dizer que a máquina que era dele, “e eu fico de férias!? Realmente… por isso é que o senhor doutor quando chega, quando volta ao fim do mês ou dois, a casa está como o senhor doutor a deixou… as janelas todas sujas… (diz com ironia)
P: Não é uma magia! (risos)
Madalena Monforte: “Não estão as janelas todas sujas, quando o senhor dr. cá chega, todas sujas das moscas, que o senhor doutor anda aí como um jornal a sujar os vidros todos, a matar as moscas! A casa está toda suja, o chão está todo riscado... e eu fico de férias!?” (com ironia)
P: E aí ele compreendeu?
Madalena Monforte: Mas não fui de férias à mesma!
P: Pois, nunca teve essa realidade?
Madalena Monforte: Não, nunca tive férias. E o meu marido também não queria tirar férias! Porque ele não queria fechar a fábrica… “ah! Vou agora fechar a fábrica duas semanas!” … Esta é a melhor de todas! Quando eu fiz 25 anos de estar lá em baixo, o meu Patrão disse-me assim “A Madalena Monforte tem passaporte?”, “eu não senhor doutor, tenho agora passaporte… passaporte para quê!? Eu não vou para lado nenhum…”, “então a Madalena Monforte mais o Manuel (nome fictício) vão tirar o passaporte, que vou levar a Madalena Monforte a Áustria uma semana, mais o Manuel”, disse ele. “Ó senhor doutor, eu vou agora cá para a Áustria…”, “vai, vai, uma semana” …
P: Se calhar ainda estavam na juventude, mais no início?

Madalena Monforte: Sim, quer dizer, já tinha 25 anos de lá estar! E o patrão disse: “O Manel gosta de caça, eu levo o Manel lá em cima à serra, que cada um tem uma certa fração dentro da serra, têm depois lá uma casa e depois apanham a caça grosa, veados! E eu levo o Manel lá acima à serra e levo a Madalena Monforte e o Manel a Itália, a Verona a ver o meu irmão.”. Já o irmão do patrão é completamente diferente dele! É uma pessoa impecável. Eu disse “está bem, eu vou falar com o Manuel, mas… senhor doutor não sei, tenho a impressão que não”, “então, mas vai a Madalena Monforte!”, “Eu não! Agora vou sozinha!”. Depois o meu marido não quis ir e eu também não fui! (diz com um tom de voz mais alto e a bater com algo na mesa).Passado uns anos, disse ao meu marido “Olha, há uma ou duas coisas que eu estou muito arrependida… Foi de não ter ido à Áustria sem ti! Tu ficavas cá!”. (diz com um tom de voz elevado) E eu ia… porque eu tinha tudo, tudo, de viagens para lá, para cá, estadia, tudo! Tinha tudo pago por eles! Então, não é triste!?
P: Apesar de tudo, hoje é uma mulher mais livre, sente-se mais livre, hoje?
Madalena Monforte: Sinto, mas há uma coisa que eu não fiz… E hoje tenho pena de não ter feito, estou arrependida, mas agora também já não faço. Foi tirar a carta e comprar um carro! Mas eu quis tirar! O meu marido nunca me deixou…Eu pedi mesmo! Nunca me deixou tirar a carta, nunca, nunca! “Ah, pois, vais, vais tirar a carta! Eu bem vejo, quando passo por elas aí na estrada, o que é que elas andam a fazer quando têm carro e cargas!”, “eu não quero saber das outras, eu só quero é para mim! Se eu vou lá acima ao M. às compras, venho carregada que nem uma burra!”. “Somos 5 pessoas em casa, tu não me levas a lado nenhum! Já tenho pedido para me levares”, tínhamos dois carros e um ficava sempre à porta, uma carrinha e uma camionete, “no dia em que eu quiser ir às compras, deixa-me cá a carrinha! Ensina-me ao menos a conduzir aqui!”, porque naquela altura havia pouca polícia! Ensinava-me e eu vinha até ao M.! Deixava cá fora da aldeia e depois vinha para casa! Mas não, não… depois eu fazia serviços para a fábrica para ele, ia às finanças e aos bancos, que é em Sintra, ia de transportes públicos… e eu disse-lhe “Ó Manel, deixa-me ir tirar a carta! Eu vou tantas vezes a Sintra, vou pelo menos duas vezes por semana, depois venho a correr para apanhar a camioneta e o autocarro para vir ainda fazer o almoço… eh pá, deixa-me tirar a carta!”, “não, já disse que não e não! Não tiras, pronto, quem manda sou eu!” … Um dia saiu a lei do balão.
P: Por causa do álcool, não é?
Madalena Monforte: Ele gostava de sair sozinho, gostava de ir à noite, às vezes chegava às tantas a casa, quando chegava assim a uma certa hora eu dizia para os meus filhos “vamos jantar que o pai hoje já vem jantado.”, e a gente jantava, mas eu tinha que esconder a comida toda que ficasse em casa! Tudo! Porque ele ia dar a volta e, se viesse com amigos, ele dava a volta e ele rapava tudo, tudo, tudo! E depois, no outro dia, dizia-lhe assim “agora quero o dinheiro.”, “queres dinheiro para quê?”, “para ir comprar aquilo que tu comeste e destes para os teus amigos! Agora não tenho, nem para mim, nem para os filhos!” Depois saiu a lei do balão, e um dia ele vai e diz-me assim “andavas sempre a dizer que gostavas de tirar a carta… agora podias ir tirar”, eu digo assim, “Eh lá, porque é que tu queres que eu tire a carta agora!?”, “ah é que se a gente for para algum lado, se eu beber de mais, depois trazes tu o carro…”, “Ahhh! Não é para me favoreceres a mim! É para tu beberes mais! Não! Muito obrigada, agora não quero! Bebe menos ou então onde estiveres, fica lá a dormir!”, e não tirei.
P: Hoje o que seria poder ir às suas comprinhas, não era?
Madalena Monforte: Mas é mesmo! Arranjar uma amiga ou duas, que tenho amigas, e a gente ia… tenho mais amigas viúvas… Nem a um domingo, nem nada, eu não saio daqui.
P: Compreendo…
Madalena Monforte: Também não vou incomodar o meu filho que está ali daquele lado, tem uma menina com 15 anos e outro com 12, para ir com eles para qualquer lado… cada um faz a sua vida, não é!? Se eles me disseram assim “olha a gente vai a tal sítio, queres vir connosco?”, é diferente. As primeiras férias que eu tive foi na companhia deles! E o primeiro fato de banho que eu vesti foi na companhia deles, portanto, que eu cheguei lá foi para Sesimbra, mas veja lá bem o que o meu filho fez… eles foram para o Algarve. Do Algarve, depois, vieram para Sesimbra, porque ela, a minha nora, é cabo na guarda republicana, é escriturária, e arranjam aquelas casas da guarda para irem passar férias. Eles fora primeiro para o Algarve e depois disseram assim “olha a gente vai ao Algarve e depois vamos ter a Peniche e depois eu venho cá buscar-te”. E assim foi, mas eu pensei “Ai meu Deus do céu! então o rapaz agora vem Peniche para aqui, só para eu passar 2 dias!”, que era só o fim de semana…O que é que eu faço? Fui comprar um fato de banho! Fui fazer a depilação (risos), que nunca tinha feito (mais risos)! Já tinha cinquenta e tal anos! E quando cheguei, ela diz assim, “ó dona Madalena Monforte”, “diz Paula” (nome fictício), “então vem preparada para a gente ir lá abaixo comprar um fato de banho?”, e eu digo assim, “não é preciso, eu já comprei!”, “então e foi…?”, “fui à depilação, fui, fui! Está descansada”. Mas sabe que eu arranjei uma…, não sei como é que aquilo se chama, para pôr por cima do fato de banho e gente traça e ata com um laço…
P: Por acaso também não sei como se chama, mas pronto, é uma espécie de uma sainha, não é?
Madalena Monforte: É uma espécie de uma saia, é! E eu nunca tirei aquilo. Eu não me sinto… tanto que o fato de banho deixou de me servir, nunca mais comprei outro. Não fui habituada a nada! Passei o casamento todo sem nunca ir à praia! Ele não ia, eu também não ia, pronto. Não! Estou mentindo! Fui à praia…
P: Se calhar também por causa dos pequenitos, não?
Madalena Monforte: Fui à praia, sim senhora, para ir à praia com os meus filhos! E dei-lhes sempre banho, eu ia sem fato de banho, e quando chegou a altura de eu já não ser capaz, porque já era preciso ir mais para dentro e eles queriam ir… E havia regras, e os banheiros que existiam na praia, dantes a gente tinha sempre banheiros, eles já sabiam, não eram só os meus! Eram praticamente todos! Para darem um balho como deve ser, eles agarravam neles, um de cada vez, iam lá para dentro, davam-lhes um bom banho e depois vinham trazê-los à gente!
P: Mas isso ainda nos anos 80 e assim? Eles davam banho?
Madalena Monforte: Davam sim senhor! Iam levá-los ao colo! A gente nem vestia fato de banho! A gente puxava as saias assim até ao joelho, mas depois dali para cima já não ia. E eles já sabiam pronto, lá iam os miúdos todos! Levavam os miúdos todos! Porque havia muita mulher que não vestia fato de banho, cá. Muitas mesmo, muitas. Só muito mais tarde depois, é que começou a ver outra maneira de viver, de ver as coisas…, pronto as pessoas foram evoluindo, não é? Mas o meu marido não evoluiu nada, esteve sempre na mesma! (levanta o tom de voz) Foram uns tempos muito complicados… levei muita tareia… (tom de voz mais baixo)
P: Pois, para quem não tem essa experiência é difícil perceber como é que se consegue suportar essa base diária de agressões, não é?
Madalena Monforte: É, é! Mas eu tinha casa, tinha água, tinha luz, tinha dinheiro! … Que eu uma vez ainda o pus na rua! (aumenta o tom de voz) Uma vez ele veio para me bater, não sei já o que é que me deu, estávamos assim mais próximos da porta… eu não sei o que é que se passou comigo… Ele pesava mais de 100 kg!
P: Era um homem grande?
Madalena Monforte: Não, não era grande, era gordo! Eu agarrei nele em peso e disse-lhe para ele “sou put*, não sou? Sou como a minha mãe, não sou? Não gostas, pois não? Rua! Vai-te embora!”
P: Porque esses nomes eram chamados? Chamava-lhe esses nomes?
Madalena Monforte: Chamava. (tom de voz muito baixo)
P: Pois, imagine, uma pessoa que esteve ali sempre ali a cuidar…
Madalena Monforte: Houve uma coisa que a gente tinha combinado… (aumenta o tom de voz) Eu nunca entrei numa taberna, sabe o que é uma taberna?
P: Sei, perfeitamente, sim.

Madalena Monforte: Lá em baixo na aldeia havia uma. E ele disse-me “Então, tu, agora vais buscar o vinho!”, eu disse “Eu não. Nunca entrei numa taberna. Eu não bebo! Queres vinho, vai buscá-lo!” e então ele levava o vinho. Houve um dia que deixou acabar… Oh meu Deus… que dia! Eu tinha assim uma coisa da loiça das Caldas, acima da mesa, ele agarra naquilo “ai, não me trouxeste o vinho…”, “é o que está combinado, tu é que trazes! Se te esqueceste, eu não tenho culpa!”, ele atira-me com aquilo, só tive tempo para fazer assim, que aquilo passou a porta de entrada e foi bater na parede do prédio dos meus patrões!
P: Podia ter… entrado nos olhos…
Madalena Monforte: Tinha me desgraçado! E eu disse assim para ele “fizeste bonita, não fizeste? Ai, é? Olha, agora se queres o vinho, vai buscá-la à mesma! E tens de me dar dinheiro para eu comprar outra fruteira, para pôr no sítio onde estava essa! Foi só o que tu ganhaste,mais nada!” E outras vezes não era de agredirem, eram palavras! Ele uma vez deu-me uma tareia tão grande que eu fiquei com os olhos todos negros… ele só deu por isso ao fim de 3 dias! Eu vinha com o almoço para ali, almoçávamos junto com os empregados, que a gente chegou a ter 78, e eu estava a comer e ele estava também, e estava esse sobrinho, e eu estive sempre de cabeça baixa.
P: Doía-lhe, com certeza?
Madalena Monforte: Não, não doía (voz mais baixa), estava era tudo negro e ele veio e diz-me assim “o que é que tens?”, “nada.”, “o que é que tens?” “nada!” (aumenta o tom de voz), “então, porque é que estás de cabeça para baixo?”, fiz só assim, porque estavam lá os empregados também a almoçar à mesa, ele estava aqui, e eu estava à frente dele. E eu fiz só assim, “por causa disto, já viste? Foste tu!”, “Foste tu!?”, só ao fim de 3 dias é que ele deu por isso. O que fez, foi lá em baixo, em casa, mas depois eu tinha que vir trazer o almoço, cá a cima, porque ele era um egoísta de primeira! Ele tinha 2 carros!
P: Ah, era a senhora que tinha de ir trazer o almoço!?
Madalena Monforte: Vinha lá de baixo, quase ao pé da praia das Maçãs… até com a minha filha, até com ela eu cheguei a vir com o carrinho, a empurrar o carrinho e com o almoço, e depois almoçávamos aqui. Porque ele não podia ir a casa! E ele tinha 6 pés, 6 pernas! Cada carro tem 4 rodas, com mais 2 pernas dele, eram 6! E eu tinha que ir! Até que depois num inverno, chateei-me com ele e disse” olha, ou levas a comer e fazes lá tu, ou faz como quiseres, agora eu não vou com a menina por aí acima, à chuva, para te levar o comer.” Vem cá almoçares a casa se quiseres, se não quiseres…Vai comer ao restaurante, vai comer onde quiseres, mas agora eu lá acima não vou mais para o almoço”, “pois! Queres é estar aqui de cu sentado em casa!”, “nem é isso! É que é muito longe! E eu tenho a menina! Eu sacrifico me por ti, mas pela menina não! Não faço isso à menina! És um egoísta! Vou agora por aí acima no carrinho, a empurrar o carrinho no terreno com a chuva, e o cabaz… não, não vou! Ou resolves como quiseres, mas eu não vou lá mais!”. Outras vezes trazia e ainda vinha fazer aqui.
P: Pois, a dedicação foi total..

Madalena Monforte: Quando ele teve a hemorragia, o AVC cerebral e hemorrágico, disseram-me… eu nem sei como ele resistiu, ele é muito forte! Pois é, mas eu depois é que andei de pantanas a quase… (diz com a voz baixa). E a assistente social lá do hospital, quandochegou a altura dele vir para casa, que não podia estar lá mais, ainda fiz obras lá em baixo na casa, tive que alargar as portas para poder entrar a cadeira de rodas, tive de modificar a casa de banho para a cadeira de rodas entrar dentro do duche, para depois poder agarrar nele e tirá-lo, arranjámos um banco próprio para pôr lá dentro do duche para ele se sentar, e… E os meus patrões não ajudaram em nada! (aumenta o tom de voz) Que as obras foram feitas na casa do meu Patrão! Não foi na minha, não é!?
P: Quando ele adoeceu estava lá ainda?
Madalena Monforte: Estava, estava. E quando ele morreu também ainda estava lá. A doença prolongou-se ainda durante 8 anos e 2 meses.
P: É muito, é muito ano… assim nessas dependências, não é?
Madalena Monforte: Ele nas vésperas de Ano Novo, em 1999, ainda estávamos em 99 e foi até 2008. Foi muito tempo e muito sacrifício… quantas vezes eu vinha cá assim às compras, ele ficava… eu para estar sossegada e descansada às compras eu tinha de o deixar deitado. Porque ele não conseguia levantar-se sozinho, nem vestir-se, nem nada, então eu ia e vinha sossegada não é? Mas só quando eu abria a porta às vezes dizia assim “ai Jesus, meu Deus do céu… já tenho sobremesa…”, sabe o que quer dizer?
P: Sei perfeitamente.
Madalena Monforte: Depois toca a agarrar nele… ai meu Deus! Depois tive lá dentro do hospital um enfermeiro muito bom! E quando eles iam fazer a limpeza, era duas vezes por dia, houve um dia em que a auxiliar dele estava-me a pôr na rua. O quarto era de duas camas, por acaso estavam as duas ocupadas, mas isso fecha-se o cortinado e pronto! E a ajudante dizia assim “a senhora tem de ir para fora.”, eu disse “não vou nada para fora, vou agora para fora! Então ele é meu marido eu estou cá sempre, não saio daqui, só para ir à casa de banho ou comer alguma coisa lá em baixo e agora está a mandar-me para a rua! Vai arranjar o meu marido? Então para arranjar o meu marido manda me para a rua? Não deve estar bem com certeza!”. Foi um enfermeiro pequenino, assim mais ou menos como eu, entrou e disse assim “o que é que se passa?”, “a sua ajudanta está a mandar-me para daqui para fora! Então estou aqui todos os dias! O homem é o meu marido, faz algum mal eu estar a ver arranjá-lo?…”, ele olhou assim para mim e diz assim “Ai a senhora deve estar agora breve para ir para casa e que não aceitam um auxílio da terceira pessoa em casa!”,eu disse “não! Eu disse à senhora da assistência social que ia experimentar!”, porque ele era uma pessoa muito esquisita, ninguém lhe podia mexer. E ele disse assim “ah pois, vocês estão para ir daqui a pouco embora, não é?”, “estamos só estou à espera que acabe algumas obras que eu estou a fazer…”, “pois, mas já está cá há mais 15 dias do que aquilo que devia, não é?”, e eu disse “estamos, eu até já tive aí uma pega que a doutora, não foi brincadeira!”. Porque a gente tem um primo em Viana do Castelo que é médico e cirurgião e diretor das urgências em Viana do Castelo, e então estava sempre a telefonar “ó prima, então? Como é que está? Ele já tem isto, ele já teve aquilo, ele fez assim, elas fizeram-lhe isto, e elas fizeram lhe aquilo…?”, e depois eu apertava com a médica (risos). E eu depois perguntei e fazia certas perguntas à médica, e ela vai diz-me assim “mas como é que a senhora sabe!?”, “olhe, porque sei! Se a senhora doutora está a ver que eu sei, responda-me à informação que eu lhe estou a pedir, que é a sua obrigação! Eu estou na minha hora da senhora me receber, portanto, eu daqui não saio!”. Ela vai porta fora e corredor fora e eu era assim atrás dela “ó doutora espera aí por mim! Não se vá embora! Eu estou dentro da minha hora, a senhora faz favor atenda-me!”, ela voltou para trás e veio então atender-me como deve ser! E tinha de ser, então!
P: Pois, ela tinha de dar informação…
Madalena Monforte: E o enfermeiro foi arranjar o meu marido, e diz-me assim “então olhe lá, a senhora quer ajudar-me a arranjar o seu marido?”, “eu quero!”, “então vai-te tu embora!”, disse ele para a auxiliar. “Vá ali ao carro tire umas luvas, ponha as luvas, que eu vou lhe ensinar como é que a senhora tem que fazer”, porque ele quando veio não saía da cama, só saía se a gente o vestisse e o tirasse em peso! Olhe que maravilha! “Atire para lá, arranja daqui, vira para cá, empurre o lençol todo para lá, todo! Agora vá lá do outro lado e virem para cá, agora puxe o lençol…”, e vim de lá a saber como é…Como era a maneira de os arranjar! É uma técnica muito boa!
P: Que ajuda e facilita o trabalho...
Madalena Monforte: Oh! Nem queira saber! Porque ele, depois, começou a ser ainda mais malandro, porque de dia dava-lhe a vontade para fazer xixi e já andava sem fralda, mas em chegar e não chegar à casa de banho…Depois com medo de fazer pelo caminho, começou a apertar, a apertar, era de noite… Ai1 Três vezes que eu cheguei a despir e a vesti-lo! Três vezes por noite! Era roupa até dizer… meu Deus! Eu cheguei a um ponto em que “eu já nem passava a roupa a ferro! Veste o pijama assim como está, quero lá saber!”. Eu não dou vencimento!
P: Sim, é difícil, imagino que tenha sido muito duro…
Madalena Monforte: E mesmo doente ainda me quis bater! Eu tive um esgotamento. Fui para a minha médica de família e ela depois, como eu lhe contei a minha vida, ela viu que eu estava com uma depressão muito grande, chorei, chorei, chorei nesse dia, ao pé dela. E ela vai e diz-me assim “olhe dona Madalena Monforte, se ele era assim, assim vai continuar a ser, ele não muda! A senhora ponha-se a pau, porque ele vai lhe bater outra vez! E além disso, não lhe faça as vontades todas! Obrigue-o a fazer certas coisas, porque ele pode fazer!”. E foi assim que eu o comecei a obrigar… o meu filho deu por isso, que eu já não estava a tratar do pai como deve ser, ele dizia assim “ó mãe, tu já não tratas o pai como deve ser, tu estás muito arisca para o pai!”, “não estou não, são ordens da médica!”. “São ordens da médica, porque eu estou com uma depressão. Mas eu agora não te conto nada. Para a semana quando a tua irmã vier cá almoçar no domingo, a gente fala… primeiro a gente almoça! Depois deixamo-lo aqui sentado à mesa, nem que seja para ele comer até ficar empanturrado de todo, e vamos para o terraço lá para a frente e eu vou-vos contar o que é que tem sido a minha vida, porque vocês não sabem nada.”. E assim foi. Juntei todos e aí é que eu contei tudo. E eles disseram assim “porque é que nunca nos disseste!” e eu disse “não, para quê? Vocês não tinham nada de sofrer por causa dele, quem estava casada com ele era eu, não eram vocês, ele se tivesse vergonho ou juízo, não me tinha feito o que fez, além de eu gostar dele como gostava! Não tinha nada que estar a fazer o que fazia e vocês darem por isso, vocês não tinham de sofrer por causa dele!”. Depois era uma pena a gente estávamos todos juntos, ou quando a gente recebia visitas, que eu fui sempre ter muita gente em casa, e ele depois havia certas coisas que não podia comer, mas que nessas alturas eu punha na mesa, mas estava sempre a pôr mais afastado, pois davam-lhe um bocadinho, depois era o filho que lhe dava não sei o quê,… mas ele lá ia com a mão esquerda (faz barulhos de quem se está a esforçar e a esticar) e agarrava e tinha que comer! E o filho depois dizia para ele “vai, vai, vai buscar mais, vai que depois está aí a criada para te aturar, não é!? Vai lá buscar mais!”. No entanto, ele gostava de continuar a beber, ele bebia… a gente punha-lhe assim, faz de conta, um bocadinho de vinho no copo, quando a gente tinha visitas! assim um bocadinho. E um dia, ele vai e diz assim para o filho, “ó filho, eu quero mais vinho!”, o filho diz assim “se tivesses sabido render o que estava aí, porque não bebes mais! Já bebeste o suficiente, já sabes que não podes!”, e elevai diz assim para o filho “o vinho é meu e eu não posso beber e tu podes!” … o filho foi- se embora a chorar de casa, e foi um caso sério para conseguir que ele se acalmasse… Ele era “eu quero, posso e mando”!
P: E isso não passa, nem muda?
Madalena Monforte: Não…

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